São Paulo, terça-feira, 04 de janeiro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

A linguagem dos patos

Toda arte que se preza é uma maneira de transformar em qualidade o que antes podia ser visto ou sentido como defeito. Não é uma forma de negar, dourar ou encobrir o "defeito", mas de afirmá-lo sob um novo ponto de vista que, surpreendentemente, ao valorizar essa "falha", funciona como redenção, e não só para o autor. É assim que o terror, a doença, a morte, o vício e a fraqueza mas também a raiva, o rancor, a inveja etc. são transubstanciados numa forma que os sublima, e não só no sentido freudiano.
A pior crítica, a mais pobre e a mais obtusa, é aquela que, em contrapartida, acredita estar revelando alguma coisa ao fazer o caminho inverso. Prefere ignorar as conseqüências da criação desse ponto de vista e buscar suas respostas, à moda de uma psicanálise aplicada, num suposto trauma que estaria, segundo ela, oculto nas origens da experiência do autor, quando na realidade é a coisa mais óbvia, deliberada e autoconsciente na própria construção da obra.
Todo mundo sabe, por exemplo, que Céline tinha opiniões nazistas, mas só um crítico infeliz vai reduzir as obras do escritor à mera representação das suas opiniões. Assim como seria grotesco, quase cem anos depois da redação de "Contra Sainte-Beuve", resumir "Em Busca do Tempo Perdido" à biografia ou à psique de Proust, à obra de um homossexual obcecado pela mãe. Ou a de Fernando Pessoa à suposição de um menino espancado na infância.
O escritor encontra seu caminho no dia em que decide radicalizá-lo em vez de negá-lo. E isso, para o bem ou para o mal, não significa buscar a cura, mas mergulhar na "doença" que lhe permite ver o mundo com seus próprios olhos, de um ponto de vista que só pode ser seu. Significa tirar a força da sua fragilidade, reforçar o que lhe é específico, fazer do seu "defeito" um estilo.
É lógico que essa radicalização supõe riscos, já que é um processo de redefinição de sentidos. Pela arte, o mundo se alarga e se liberta. Pela afirmação das individualidades, das diferenças e dos desvios, os sinais se invertem e o que era considerado negativo ganha positividade. Foi assim, por exemplo, que Godard pôde reinventar uma arte industrial como o cinema, valorizando a descontinuidade narrativa onde ela era considerada erro. E Thomas Bernhard, em sentido inverso, pôde revisitar a narrativa romanesca linear (e continuar absolutamente moderno), onde em princípio ela seria vista como anacrônica.
A pior crítica é a que procura, muitas vezes por motivos morais, pessoais e psicológicos insondáveis, que dizem mais respeito ao crítico do que a qualquer outra pessoa, interromper esse processo de alargamento dos sentidos próprio das artes, agarrando-se a definições já estabelecidas, a uma série de parti pris e de regras fixas, para restituir como defeito o que se transfigurou em qualidade. Seu pressuposto é a negação da irrupção das individualidades, das diferenças das experiências de cada autor, em nome de um modelo geral que a priori pudesse se aplicar a todos. E, embora dissimulada, nos seus preconceitos essa crítica acaba revelando, inadvertidamente, mais sobre si mesma do que sobre as obras comentadas. Pois é guiada por um ressentimento que ainda não encontrou a arte, não conseguiu se transfigurar em estilo, e talvez por isso precise reduzir tudo o que vê aos limites da sua própria imagem.
No discurso do Prêmio Nobel, proferido em 2003 e agora publicado numa plaqueta nos Estados Unidos, o sul-africano J.M. Coetzee cita "Robinson Crusoé", de Daniel Defoe, para falar do personagem e de seu autor ("He and his Man"). Embaralha os dois, à maneira de Borges, põe o personagem no lugar do autor e este, no lugar do personagem. Faz o personagem reinventar o autor, num movimento circular.
O autor passa a ser uma criação ficcional, de autoria do personagem, que por sua vez é obra do autor. Mas em nenhum momento Coetzee cai na armadilha fácil de querer explicar um pelo outro. Cria uma bela imagem para a relação de paralelismo entre os dois: "São marujos às voltas com o cordame, um num navio rumo ao oeste, o outro num navio rumo ao leste. Os dois navios passam perto, o suficiente para se saudarem. Mas o mar está bravio e o céu, tempestuoso: seus olhos fustigados pelas rajadas das ondas e da chuva, suas mãos queimadas pelas cordas, passam um pelo outro, demasiado ocupados até para acenar".
Coetzee abre seu discurso com outra imagem, também citação de Defoe, em que fala dos patos da costa da Inglaterra. São "decoy ducks" ou "duckoys", patos criados em lagos artificiais, alimentados pelo homem para servir de chamarizes dos patos do continente. Na estação certa, os "duckoys" voam até a Holanda e a Alemanha e lá, pela linguagem dos patos, convencem seus colegas continentais a acompanhá-los de volta para a costa inglesa, onde o alimento é farto, e os lagos não congelam no inverno. Assim que chegam à Inglaterra, no entanto, os patos são capturados em armadilhas, depenados e vendidos aos milhares.
A imagem do engano dos patos cairia como uma luva na mão do crítico que seguisse os preceitos oitocentistas de Sainte-Beuve num mundo literário pós-freudiano e pós-borgiano e continuasse interessado pelo que não é a obra, tentando explicá-la pela sua redução à psicologia dos autores. Pois um equívoco desse tamanho só poderia ter tradução na linguagem dos patos.


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