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BERNARDO CARVALHO
A linguagem dos patos
Toda arte que se preza é uma
maneira de transformar em
qualidade o que antes podia ser
visto ou sentido como defeito.
Não é uma forma de negar, dourar ou encobrir o "defeito", mas
de afirmá-lo sob um novo ponto
de vista que, surpreendentemente, ao valorizar essa "falha", funciona como redenção, e não só
para o autor. É assim que o terror,
a doença, a morte, o vício e a fraqueza mas também a raiva, o
rancor, a inveja etc. são transubstanciados numa forma que os sublima, e não só no sentido freudiano.
A pior crítica, a mais pobre e a
mais obtusa, é aquela que, em
contrapartida, acredita estar revelando alguma coisa ao fazer o
caminho inverso. Prefere ignorar
as conseqüências da criação desse
ponto de vista e buscar suas respostas, à moda de uma psicanálise aplicada, num suposto trauma
que estaria, segundo ela, oculto
nas origens da experiência do autor, quando na realidade é a coisa
mais óbvia, deliberada e autoconsciente na própria construção
da obra.
Todo mundo sabe, por exemplo,
que Céline tinha opiniões nazistas, mas só um crítico infeliz vai
reduzir as obras do escritor à mera representação das suas opiniões. Assim como seria grotesco,
quase cem anos depois da redação de "Contra Sainte-Beuve", resumir "Em Busca do Tempo Perdido" à biografia ou à psique de
Proust, à obra de um homossexual obcecado pela mãe. Ou a de
Fernando Pessoa à suposição de
um menino espancado na infância.
O escritor encontra seu caminho no dia em que decide radicalizá-lo em vez de negá-lo. E isso,
para o bem ou para o mal, não
significa buscar a cura, mas mergulhar na "doença" que lhe permite ver o mundo com seus próprios olhos, de um ponto de vista
que só pode ser seu. Significa tirar
a força da sua fragilidade, reforçar o que lhe é específico, fazer do
seu "defeito" um estilo.
É lógico que essa radicalização
supõe riscos, já que é um processo
de redefinição de sentidos. Pela
arte, o mundo se alarga e se liberta. Pela afirmação das individualidades, das diferenças e dos desvios, os sinais se invertem e o que
era considerado negativo ganha
positividade. Foi assim, por
exemplo, que Godard pôde reinventar uma arte industrial como
o cinema, valorizando a descontinuidade narrativa onde ela era
considerada erro. E Thomas Bernhard, em sentido inverso, pôde
revisitar a narrativa romanesca
linear (e continuar absolutamente moderno), onde em princípio
ela seria vista como anacrônica.
A pior crítica é a que procura,
muitas vezes por motivos morais,
pessoais e psicológicos insondáveis, que dizem mais respeito ao
crítico do que a qualquer outra
pessoa, interromper esse processo
de alargamento dos sentidos próprio das artes, agarrando-se a definições já estabelecidas, a uma
série de parti pris e de regras fixas,
para restituir como defeito o que
se transfigurou em qualidade.
Seu pressuposto é a negação da irrupção das individualidades, das
diferenças das experiências de cada autor, em nome de um modelo
geral que a priori pudesse se aplicar a todos. E, embora dissimulada, nos seus preconceitos essa crítica acaba revelando, inadvertidamente, mais sobre si mesma do
que sobre as obras comentadas.
Pois é guiada por um ressentimento que ainda não encontrou
a arte, não conseguiu se transfigurar em estilo, e talvez por isso
precise reduzir tudo o que vê aos
limites da sua própria imagem.
No discurso do Prêmio Nobel,
proferido em 2003 e agora publicado numa plaqueta nos Estados
Unidos, o sul-africano J.M. Coetzee cita "Robinson Crusoé", de
Daniel Defoe, para falar do personagem e de seu autor ("He and
his Man"). Embaralha os dois, à
maneira de Borges, põe o personagem no lugar do autor e este,
no lugar do personagem. Faz o
personagem reinventar o autor,
num movimento circular.
O autor passa a ser uma criação
ficcional, de autoria do personagem, que por sua vez é obra do
autor. Mas em nenhum momento
Coetzee cai na armadilha fácil de
querer explicar um pelo outro.
Cria uma bela imagem para a relação de paralelismo entre os
dois: "São marujos às voltas com
o cordame, um num navio rumo
ao oeste, o outro num navio rumo
ao leste. Os dois navios passam
perto, o suficiente para se saudarem. Mas o mar está bravio e o
céu, tempestuoso: seus olhos fustigados pelas rajadas das ondas e
da chuva, suas mãos queimadas
pelas cordas, passam um pelo outro, demasiado ocupados até para
acenar".
Coetzee abre seu discurso com
outra imagem, também citação
de Defoe, em que fala dos patos
da costa da Inglaterra. São "decoy ducks" ou "duckoys", patos
criados em lagos artificiais, alimentados pelo homem para servir de chamarizes dos patos do
continente. Na estação certa, os
"duckoys" voam até a Holanda e
a Alemanha e lá, pela linguagem
dos patos, convencem seus colegas
continentais a acompanhá-los de
volta para a costa inglesa, onde o
alimento é farto, e os lagos não
congelam no inverno. Assim que
chegam à Inglaterra, no entanto,
os patos são capturados em armadilhas, depenados e vendidos
aos milhares.
A imagem do engano dos patos
cairia como uma luva na mão do
crítico que seguisse os preceitos oitocentistas de Sainte-Beuve num
mundo literário pós-freudiano e
pós-borgiano e continuasse interessado pelo que não é a obra,
tentando explicá-la pela sua redução à psicologia dos autores.
Pois um equívoco desse tamanho
só poderia ter tradução na linguagem dos patos.
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