São Paulo, quarta-feira, 04 de janeiro de 2006

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MARCELO COELHO

O sol dentro da piscina

Na semana passada, citei alguns versos de Vincent Katz, em que o poeta falava de chuva, de quaresmeiras e de sua mulher, "aqui comigo,/ à frente do mundo". A sensação de estar "à frente do mundo" me pareceu adequada para este início de janeiro, e ainda dá tempo, acho, de lembrar alguns outros livros de poesia que também nos fazem olhar para diante.
Um dos maiores poetas da segunda metade do século 20, o romeno Paul Celan (1920-1970), escreve sobre lançar uma rede "nos rios ao norte do futuro". Parece indicar, com esse verso misterioso, a necessidade de manter a esperança, ainda que a projetemos para um ponto inatingível, mais além de qualquer expectativa temporal concreta.
Pelo menos, é isso o que sugere o filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002), em "Quem Sou Eu, Quem És Tu", livro lançado há pouco pela editora da Uerj, no qual comenta passo a passo uma série de poemas de Celan. Lançar uma rede ao norte do futuro, diz Gadamer, é procurar lugares "fora dos caminhos e trajetos habituais, lá onde ninguém mais pesca"; quem lança a rede "aguarda o que está por vir, lá onde nenhuma expectativa de experiência consegue alcançar".
Mas vale citar na íntegra o curto poema de Celan, na tradução de Raquel Abi-Sâmara: "Nos rios ao norte do futuro/ lanço a rede que tu/ hesitante lastreias/ de sombras escritas com/ pedras".
Na explicação de Gadamer, trata-se aqui de uma atividade muito concreta e precisa: não é possível pescar simplesmente jogando a rede na água, pois ela ficaria solta, boiando. É preciso amarrar pedras à rede, que funcionem como um lastro. Atividade cuidadosa, a ser desenvolvida de modo "hesitante", pois "aquele que lastreia a rede não deve fazê-lo nem muito nem pouco; não deve ser muito, para evitar que a rede afunde, e não deve ser pouco, para evitar que flutue na superfície".
Do mesmo modo, continua Gadamer, o "eu" que lança a rede necessita de um "tu", encarregado de dar lastro, peso, às expectativas do pescador. Não se trata, diz o filósofo, de confiar numa "abertura indeterminada" diante do que possa acontecer no futuro, mas de algo fundamentado em nossas experiências e decepções passadas, em todas as "sombras escritas" ao longo de nossa vida, que surgem de nossa interação com os outros, com o passado, com o mundo real.
Dispensável dizer que esta é apenas uma interpretação, entre muitas possíveis, do enigmático texto de Celan. Poderíamos pensar nesse "eu" e "tu" simplesmente como o homem e a mulher, entendendo a "pesca" como metáfora da procriação. O "lançar" e o "lastrear" corresponderiam, desse modo, aos papéis masculino e feminino na fecundação...
Seja como for, o livro de Gadamer nos ajuda a fugir de uma atitude comum na recepção da poesia e da arte moderna em geral: a conversa de que "basta sentir" o que está diante de nossos olhos, sem que seja necessário compreender nem explicar coisa nenhuma...
Passo de Celan para outro poeta, que também parece dizer algo sobre as expectativas do futuro. Trata-se do brasileiro Sérgio Medeiros, cujo "Alongamento" (Ateliê editorial) é um dos mais bonitos e desconcertantes livros que li ultimamente.
A primeira parte do livro, que reúne poemas escritos de 2000 a 2004, ocupa umas 20 e tantas páginas. Resumindo grosseiramente, o poeta descreve o que vê da janela de um apartamento à beira-mar, ao longo de um dia inteiro de verão. Num jogo de aproximações e recuos, dá-se uma mistura entre o rosto do poeta no espelho e a paisagem da baía, entre os lençóis da cama e a areia da praia, entre a piscina do prédio e a rede de proteção da janela, entre o céu e um varal de roupa. O efeito desse "alongamento" visual é fascinante. Cito alguns trechos, que combinam com esta época do ano.
De manhã, no começo do poema, "a baía/ puxa a luminosidade/ como uma coberta/ que encolhe/ na água /-não se agasalha/ nunca/ inteira". Mais adiante, enquanto o poeta faz a barba, "a ilha/ cobre-se/ duma espuma/ verde", e é possível ver "um saco de cimento/ onde/ bate/ forte/ o sol", a saber, "o travesseiro/ onde/ pousou/ a noite".
Depois, o tempo vai mudando: "o vento sul/ se contorce/ como mangueira/ jorrando certo/ e inesperado"; "as nuvens/ se embolam/ como panos/ sujos".
No fim, já de noite, "o luar/ se refestela/ no mar,/ mas a lua/ se/ recolhe/ na/ piscina". Uma piscina que está "esvaziada/ à noite; / as cadeiras brancas/crescem/ nas bordas/ como aranhas/ gigantes mas serenas/ -um brilho/ efervescente/ sobrevive/ intacto no fundo/ como teia/ no vento".
Esse brilho que sobrevive no fundo da piscina, de noite, não deixa de sugerir a luz do sol de novo, no dia seguinte. A teia de aranha no vento não é muito diferente da rede de pesca de Celan, na sua expectativa de futuro.
Nada de muito utópico do ponto de vista social, por certo: digamos que o mar não está para peixe nesse aspecto. Mas não é tão desesperançado assim, eu acho, o poema que diz: "a água/ inventa/ na areia/ para uso/ próprio)/ uma bandeja de umidade:/ nunca escorre/ para fora/ dela".
Em matéria de expectativas para o ano novo, convenhamos que eis aqui uma lição de modéstia bastante razoável. O que esperar mais de 2006? Talvez estejamos apenas imitando outra figura que emerge do livro de Sérgio Medeiros: "não se sabe/ bem/ quem/ viaja em pé/ diante de uma porta/ fechada:/ o windsurf/ na baía/ à procura/ de paredes de ar".
Não é a procura mais inútil que conheço.


@ - coelhofsp@uol.com.br


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