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MARCELO COELHO
O sol dentro da piscina
Na semana passada, citei alguns versos de Vincent Katz,
em que o poeta falava de chuva,
de quaresmeiras e de sua mulher,
"aqui comigo,/ à frente do mundo". A sensação de estar "à frente
do mundo" me pareceu adequada
para este início de janeiro, e ainda
dá tempo, acho, de lembrar alguns
outros livros de poesia que também nos fazem olhar para diante.
Um dos maiores poetas da segunda metade do século 20, o romeno Paul Celan (1920-1970), escreve sobre lançar uma rede "nos
rios ao norte do futuro". Parece
indicar, com esse verso misterioso,
a necessidade de manter a esperança, ainda que a projetemos para um ponto inatingível, mais
além de qualquer expectativa
temporal concreta.
Pelo menos, é isso o que sugere o
filósofo Hans-Georg Gadamer
(1900-2002), em "Quem Sou Eu,
Quem És Tu", livro lançado há
pouco pela editora da Uerj, no
qual comenta passo a passo uma
série de poemas de Celan. Lançar
uma rede ao norte do futuro, diz
Gadamer, é procurar lugares "fora dos caminhos e trajetos habituais, lá onde ninguém mais pesca"; quem lança a rede "aguarda
o que está por vir, lá onde nenhuma expectativa de experiência
consegue alcançar".
Mas vale citar na íntegra o curto
poema de Celan, na tradução de
Raquel Abi-Sâmara: "Nos rios ao
norte do futuro/ lanço a rede que
tu/ hesitante lastreias/ de sombras
escritas com/ pedras".
Na explicação de Gadamer, trata-se aqui de uma atividade muito concreta e precisa: não é possível pescar simplesmente jogando a
rede na água, pois ela ficaria solta,
boiando. É preciso amarrar pedras à rede, que funcionem como
um lastro. Atividade cuidadosa, a
ser desenvolvida de modo "hesitante", pois "aquele que lastreia a
rede não deve fazê-lo nem muito
nem pouco; não deve ser muito,
para evitar que a rede afunde, e
não deve ser pouco, para evitar
que flutue na superfície".
Do mesmo modo, continua Gadamer, o "eu" que lança a rede necessita de um "tu", encarregado
de dar lastro, peso, às expectativas
do pescador. Não se trata, diz o filósofo, de confiar numa "abertura
indeterminada" diante do que
possa acontecer no futuro, mas de
algo fundamentado em nossas experiências e decepções passadas,
em todas as "sombras escritas" ao
longo de nossa vida, que surgem
de nossa interação com os outros,
com o passado, com o mundo real.
Dispensável dizer que esta é apenas uma interpretação, entre muitas possíveis, do enigmático texto
de Celan. Poderíamos pensar nesse "eu" e "tu" simplesmente como
o homem e a mulher, entendendo
a "pesca" como metáfora da procriação. O "lançar" e o "lastrear"
corresponderiam, desse modo, aos
papéis masculino e feminino na
fecundação...
Seja como for, o livro de Gadamer nos ajuda a fugir de uma atitude comum na recepção da poesia e da arte moderna em geral: a
conversa de que "basta sentir" o
que está diante de nossos olhos,
sem que seja necessário compreender nem explicar coisa nenhuma...
Passo de Celan para outro poeta, que também parece dizer algo
sobre as expectativas do futuro.
Trata-se do brasileiro Sérgio Medeiros, cujo "Alongamento" (Ateliê editorial) é um dos mais bonitos e desconcertantes livros que li
ultimamente.
A primeira parte do livro, que
reúne poemas escritos de 2000 a
2004, ocupa umas 20 e tantas páginas. Resumindo grosseiramente,
o poeta descreve o que vê da janela de um apartamento à beira-mar, ao longo de um dia inteiro de
verão. Num jogo de aproximações
e recuos, dá-se uma mistura entre
o rosto do poeta no espelho e a
paisagem da baía, entre os lençóis
da cama e a areia da praia, entre
a piscina do prédio e a rede de proteção da janela, entre o céu e um
varal de roupa. O efeito desse
"alongamento" visual é fascinante. Cito alguns trechos, que combinam com esta época do ano.
De manhã, no começo do poema, "a baía/ puxa a luminosidade/ como uma coberta/ que encolhe/ na água /-não se agasalha/
nunca/ inteira". Mais adiante, enquanto o poeta faz a barba, "a
ilha/ cobre-se/ duma espuma/ verde", e é possível ver "um saco de cimento/ onde/ bate/ forte/ o sol", a
saber, "o travesseiro/ onde/ pousou/ a noite".
Depois, o tempo vai mudando:
"o vento sul/ se contorce/ como
mangueira/ jorrando certo/ e inesperado"; "as nuvens/ se embolam/
como panos/ sujos".
No fim, já de noite, "o luar/ se refestela/ no mar,/ mas a lua/ se/ recolhe/ na/ piscina". Uma piscina
que está "esvaziada/ à noite; / as
cadeiras brancas/crescem/ nas
bordas/ como aranhas/ gigantes
mas serenas/ -um brilho/ efervescente/ sobrevive/ intacto no
fundo/ como teia/ no vento".
Esse brilho que sobrevive no
fundo da piscina, de noite, não
deixa de sugerir a luz do sol de
novo, no dia seguinte. A teia de
aranha no vento não é muito diferente da rede de pesca de Celan,
na sua expectativa de futuro.
Nada de muito utópico do ponto de vista social, por certo: digamos que o mar não está para peixe nesse aspecto. Mas não é tão
desesperançado assim, eu acho, o
poema que diz: "a água/ inventa/
na areia/ para uso/ próprio)/ uma
bandeja de umidade:/ nunca escorre/ para fora/ dela".
Em matéria de expectativas para o ano novo, convenhamos que
eis aqui uma lição de modéstia
bastante razoável. O que esperar
mais de 2006? Talvez estejamos
apenas imitando outra figura que
emerge do livro de Sérgio Medeiros: "não se sabe/ bem/ quem/ viaja em pé/ diante de uma porta/ fechada:/ o windsurf/ na baía/ à
procura/ de paredes de ar".
Não é a procura mais inútil que
conheço.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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