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BIOGRAFIA
Narrativa empresta charme à vida de James
MARCELO PEN
especial para a Folha
Numa tarde de
abril de 1894, Veneza foi palco de um
curioso incidente
internacional. Aboletado numa gôndola, o romancista americano
Henry James cruzava a laguna
com uma preciosa carga de vestidos. Num determinado ponto,
parou e passou a jogar os trajes na
água. Mas estes se recusavam a
afundar. Mesmo com o auxílio do
remo, voltavam à superfície, como balões negros.
Os vestidos pertenciam à sua
conterrânea, amiga e colega de
ofício, Constance Fenimore
Woolson, morta em circunstâncias misteriosas. Foi dessa cena
extraída de um programa da BBC
que Lyndall Gordon, premiada
por suas biografias de Charlotte
Brontë, Virginia Woolf e George
Eliot, partiu para investigar a vida
de Henry James.
Há uma certa audácia por trás
de "A Private Life of Henry James:
Two Women and His Art", lançada este ano nos EUA, pois, o que
tinha a autora à frente senão uma
trilha das mais percorridas e das
menos sensacionais?
A trajetória de James é desprovida de surpresas. Como Brás Cubas, sua vida pode ser definida
por um capítulo de "negativas".
Ele não participou da Guerra
Civil norte-americana, embora o
conflito tenha batido à sua porta;
preferiu não residir nos Estados
Unidos, seu país de origem, e
nunca se casou.
Até onde se sabe, apesar do período em que morou com Constance e das cartas com forte teor
erótico enviadas a homens mais
jovens, o "Velho Mestre" também
nunca fornicou.
Some-se a isso o fato de que,
mesmo sendo tão pouco dramática, essa vida foi escarafunchada
como poucas neste século.
A maior dessas investigações é a
obra em cinco volumes escrita
por Leon Edel, talvez um dos mais
importantes monumentos biográficos atuais. Nos anos 80, o autor condensou-a num único calhamaço de mais de 700 páginas,
"Henry James: A Life".
Tome-se esse estudo, junto com
a biografia de F.W. Dupee, por
exemplo, e já não restariam pedras no caminho.
Mas, se a estrada é conhecida, o
uso que Gordon faz de dois velhos
recursos narrativos emprestam
todo o charme ao passeio.
A princípio, somos fisgados por
um truque digno de Agatha
Christie. Por que James estaria se
livrando daqueles vestidos de
Constance, ou, como ele gostava
de chamá-la, Fenimore? O que
havia por trás daquele relacionamento, capaz de levá-lo a gesto
tão peripatético?
O artifício seguinte reside no
ponto de vista. Pois não estamos
tanto diante de uma biografia tradicional sobre Henry James, como de um relato sobre sua trajetória, conduzido pelo olhar de
duas das mulheres que mais o influenciaram.
A primeira é sua prima Minny
Temple, de acordo com James, "a
própria heroína de nossa cena cotidiana". Morreu jovem, de tuberculose, mas o escritor nunca a
esquecerá, inspirando-se nela para compor suas grandes personagens femininas, como Daisy Miller, Isabel Archer ("O Retrato de
Uma Senhora") e Milly Theale
("As Asas da Pomba").
A segunda é Constance Woolson. Como o tio-avô James Fenimore Cooper, autor de "O Último
dos Moicanos", ela fez sucesso
com romances regionalistas.
Gordon chega a ensaiar uma neurótica relação Salieri x Mozart às
avessas, pintando um James invejoso da popularidade da amiga.
O escritor dividiu o mesmo teto
com ela em Bellosguardo (Florença) numa época em que esse
arranjo doméstico podia ser "mal
interpretado".
James descreveu os dias de
Constance ali como "provavelmente os mais encantadores,
tranqüilos, gratificantes e deleitosos que ela ... já passou."
Sete anos mais tarde, a romancista pulou para a morte da janela
de seu quarto em Veneza. Se não
repercutiram em sua ficção rala,
as camadas obscuras e intensas
reverberações de sua existência
tiveram outra sorte de desenvolvimento. Partiu de Constance a
idéia que originou uma das mais
célebres histórias de James, "A
Fera na Selva".
Por essa e outras razões, Gordon o acusa de ter sido um "predador de almas". A imputação
não é nova. O próprio romancista
chegou a afastar uma admiradora, temendo "engolfá-la" na "luz
branca" de sua imaginação.
Mas a rigidez da perspectiva
adotada por Gordon impõe limites.
As fortes figuras do irmão filósofo William e da talentosa irmã
Alice perdem consistência, os pais
de James ganham camisa-de-força interpretativa e personalidades
como Turgueniev e R.L. Stevenson quase desaparecem.
Gordon vai ao extremo de condenar os prefácios críticos escritos por James para a edição de
suas obras completas ("irritantes", segundo ela), apenas porque
deixam de reconhecer a importância pessoal de Constance.
O mais grave, porém, é que Gordon parece perder o fio da meada
após o episódio da morte da romancista. Eventos relevantes como o falecimento de William, a
turnê de James pelos EUA e mesmo sua relação com a escritora
Edith Wharton e com o nascente
grupo de Bloomsbury recebem
tratamento superficial.
Talvez, em nome da verdade, as
biografias exijam uma perspectiva bem mais ampla do que a escolhida por Gordon, independente
dos encantos que a caminhada
possa oferecer.
Avaliação:
Livro: A Private Life of Henry James: Two
Women and His Art
Autor: Lyndall Gordon
Lançamento: W.W. Norton & Company
Quanto: US$ 22,75 (500 págs.)
Onde encomendar: www.amazon.com
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