São Paulo, #!L#Sexta-feira, 04 de Fevereiro de 2000


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BIOGRAFIA
Narrativa empresta charme à vida de James

MARCELO PEN
especial para a Folha

Numa tarde de abril de 1894, Veneza foi palco de um curioso incidente internacional. Aboletado numa gôndola, o romancista americano Henry James cruzava a laguna com uma preciosa carga de vestidos. Num determinado ponto, parou e passou a jogar os trajes na água. Mas estes se recusavam a afundar. Mesmo com o auxílio do remo, voltavam à superfície, como balões negros.
Os vestidos pertenciam à sua conterrânea, amiga e colega de ofício, Constance Fenimore Woolson, morta em circunstâncias misteriosas. Foi dessa cena extraída de um programa da BBC que Lyndall Gordon, premiada por suas biografias de Charlotte Brontë, Virginia Woolf e George Eliot, partiu para investigar a vida de Henry James.
Há uma certa audácia por trás de "A Private Life of Henry James: Two Women and His Art", lançada este ano nos EUA, pois, o que tinha a autora à frente senão uma trilha das mais percorridas e das menos sensacionais?
A trajetória de James é desprovida de surpresas. Como Brás Cubas, sua vida pode ser definida por um capítulo de "negativas".
Ele não participou da Guerra Civil norte-americana, embora o conflito tenha batido à sua porta; preferiu não residir nos Estados Unidos, seu país de origem, e nunca se casou.
Até onde se sabe, apesar do período em que morou com Constance e das cartas com forte teor erótico enviadas a homens mais jovens, o "Velho Mestre" também nunca fornicou.
Some-se a isso o fato de que, mesmo sendo tão pouco dramática, essa vida foi escarafunchada como poucas neste século.
A maior dessas investigações é a obra em cinco volumes escrita por Leon Edel, talvez um dos mais importantes monumentos biográficos atuais. Nos anos 80, o autor condensou-a num único calhamaço de mais de 700 páginas, "Henry James: A Life".
Tome-se esse estudo, junto com a biografia de F.W. Dupee, por exemplo, e já não restariam pedras no caminho.
Mas, se a estrada é conhecida, o uso que Gordon faz de dois velhos recursos narrativos emprestam todo o charme ao passeio.
A princípio, somos fisgados por um truque digno de Agatha Christie. Por que James estaria se livrando daqueles vestidos de Constance, ou, como ele gostava de chamá-la, Fenimore? O que havia por trás daquele relacionamento, capaz de levá-lo a gesto tão peripatético?
O artifício seguinte reside no ponto de vista. Pois não estamos tanto diante de uma biografia tradicional sobre Henry James, como de um relato sobre sua trajetória, conduzido pelo olhar de duas das mulheres que mais o influenciaram.
A primeira é sua prima Minny Temple, de acordo com James, "a própria heroína de nossa cena cotidiana". Morreu jovem, de tuberculose, mas o escritor nunca a esquecerá, inspirando-se nela para compor suas grandes personagens femininas, como Daisy Miller, Isabel Archer ("O Retrato de Uma Senhora") e Milly Theale ("As Asas da Pomba").
A segunda é Constance Woolson. Como o tio-avô James Fenimore Cooper, autor de "O Último dos Moicanos", ela fez sucesso com romances regionalistas. Gordon chega a ensaiar uma neurótica relação Salieri x Mozart às avessas, pintando um James invejoso da popularidade da amiga.
O escritor dividiu o mesmo teto com ela em Bellosguardo (Florença) numa época em que esse arranjo doméstico podia ser "mal interpretado".
James descreveu os dias de Constance ali como "provavelmente os mais encantadores, tranqüilos, gratificantes e deleitosos que ela ... já passou."
Sete anos mais tarde, a romancista pulou para a morte da janela de seu quarto em Veneza. Se não repercutiram em sua ficção rala, as camadas obscuras e intensas reverberações de sua existência tiveram outra sorte de desenvolvimento. Partiu de Constance a idéia que originou uma das mais célebres histórias de James, "A Fera na Selva".
Por essa e outras razões, Gordon o acusa de ter sido um "predador de almas". A imputação não é nova. O próprio romancista chegou a afastar uma admiradora, temendo "engolfá-la" na "luz branca" de sua imaginação.
Mas a rigidez da perspectiva adotada por Gordon impõe limites.
As fortes figuras do irmão filósofo William e da talentosa irmã Alice perdem consistência, os pais de James ganham camisa-de-força interpretativa e personalidades como Turgueniev e R.L. Stevenson quase desaparecem.
Gordon vai ao extremo de condenar os prefácios críticos escritos por James para a edição de suas obras completas ("irritantes", segundo ela), apenas porque deixam de reconhecer a importância pessoal de Constance.
O mais grave, porém, é que Gordon parece perder o fio da meada após o episódio da morte da romancista. Eventos relevantes como o falecimento de William, a turnê de James pelos EUA e mesmo sua relação com a escritora Edith Wharton e com o nascente grupo de Bloomsbury recebem tratamento superficial.
Talvez, em nome da verdade, as biografias exijam uma perspectiva bem mais ampla do que a escolhida por Gordon, independente dos encantos que a caminhada possa oferecer.


Avaliação:   


Livro: A Private Life of Henry James: Two Women and His Art
Autor: Lyndall Gordon
Lançamento: W.W. Norton & Company
Quanto: US$ 22,75 (500 págs.)
Onde encomendar: www.amazon.com


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