São Paulo, sexta-feira, 04 de fevereiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Lamento de um pobre diabo

É o Diabo mesmo. Só pode ser ele. O menino tentava chegar a Deus, procurava-o com sinceridade, mas em lugar de Deus era o Diabo que o atendia, que o servia, que estava sempre ao lado dele. O garoto queria ser casto, preparava-se para o dia em que faria o voto de castidade, voto perpétuo e consciente, o sacerdócio era um sonho possível.
Para chegar lá, seria necessário enfrentar aquilo que uma tia chamava de "abrolhos", as dificuldades todas, do mundo e da carne. E aí, pelos 12 anos, sentiu no corpo o apelo do pecado, que veio de arrastão com o pavor de corromper-se, de perder a graça -enfim, foi decisivo o momento em que, ajoelhado, diante do confessor, abriu o seu espanto, que no fundo era medo.
Com a experiência de casos iguais, o confessor entendeu rápido: "É o Diabo, meu filho, é o Diabo! É ele quem o tenta. Reze bastante para se livrar das ciladas diabólicas! É o Diabo!".
Sim, era o Diabo. O menino rezava e, quanto mais rezava, mais o Diabo se agarrava nele. O que estaria errado? Nos momentos de desespero, lembrava-se de que lera a vida de um santo medieval, que preferiu se mutilar na carne para evitar o pecado da carne. Neste dilema, não foi o Diabo que o dissuadiu de solução tão radical. Ele próprio desistiu da idéia.
Um dia não agüentou e procurou novamente o confessor. Perguntou se "aquilo" demoraria muito. No fundo, na ingenuidade que o Diabo ainda não afetara, acreditava numa travessia, no ônus de um rito, rito de passagem, logo dominaria os sentidos todos. O confessor, que tinha um mau hálito capaz de afugentar uma legião de demônios, encorajou o garoto.
"Sim, meu filho, com o tempo isso passa, é coisa da idade, agüente mais um pouco... e reze... reze muito... reze a são Luís Gonzaga, padroeiro da castidade... ele era tão puro que nem olhava para a própria mãe.."
O menino acreditou que "aquilo" passaria -um, dois anos no máximo, e tudo seria mais fácil, as noites de terror ficariam arquivadas em sua memória, para nunca mais.
Bem, o Diabo, mais uma vez, venceu a "terrível pugna" -a expressão é de um dos mais esclarecidos doutores da igreja. A pugna da adolescência passou, o menino tornou-se jovem, moço e homem -com tudo de ruim que pertence à miséria dos homens. O Diabo nunca o deixou, continuou a terrível pugna na alma e na carne do ex-menino.
E o cansaço foi grande, tão grande que, na altura dos 50 anos, ele pensou em perguntar novamente a alguém se "aquilo" demoraria muito. O "aquilo", agora, era um pouco diferente, ou bastante diferente. Não se tratava mais do Diabo e da carne, mas do diabo da carne ou da carne do diabo. Seria a maldição que acompanha aqueles que "botam a mão no arado e olham para trás"? Até que ponto ele botara a mão no arado? Até que ponto ele podia olhar para os lados sem ser para trás?
Tudo parecia ter ido embora, para nunca mais voltar. Ele ficara tão ruim, tão imprestável, que até mesmo o Diabo parecia ter ido embora, deixando-o desamparado -se é que o Diabo alguma vez o amparara. Só então descobriu que nem mais precisava do Diabo para ele próprio ser um diabo. Se na porta do inferno deixa-se "ogni speranza", quando alguém se descobre sem qualquer esperança nem precisa entrar no inferno. O inferno não são mais os outros, é ele mesmo. Ele, Diabo.
Diabo que se fez velho e, ao contrário da tradição, não se transformou em monge. Continuou Diabo mesmo, um pouco defasado, deteriorado pelo tempo e pela vida, mas Diabo para o uso e o abuso.
Como todo mundo sabe, há duas espécies de diabo. O diabo rico, que ri à toa e sempre vence; e o pobre-diabo que sempre perde, sempre foge, mesmo quando não há água-benta para afugentá-lo. E, como todos os pobres, diabos ou homens, tentou se bastar entre os pobres, na aldeia dos pobres-diabos como ele, um escorando o outro, mas todos se detestando.
Daí que o reencontro com a condição humana o surpreende, sofredor e faminto. Um pobre-diabo não se pode dar a esses luxos, é preciso dar um adeus a essas coisas, tomar juízo e vergonha, afinal, não fica bem a um diabo, velho e pobre, curtir a fundo a necessidade de tudo querer -e muito.
Não há de ser nada. A vida, mesmo a vida de um pobre-diabo, é assim mesmo. E ele não tem ninguém diante de quem se ajoelhar para perguntar: "Isso passa?". Por experiência pessoal, sabe que essas coisas, como o "aquilo" de antigamente, não passam tão cedo, aliás não passam nunca. Sabe-se condenado a morrer com todas essas coisas que desgraçam o homem e enegrecem a alma daqueles que julgam ainda tê-la.
Mas que diabo! A aventura, até a menos venturosa, tem um preço -e ele acredita que tem alguns gravetos guardados para aumentar o fogo da caldeira que o queima. Em linguagem capitalista, tem capital acumulado para gastar. E gasta. E se gasta. Mas se inunda com as sucessivas "primeira vez" que se sucedem, vertiginosamente nos últimos anos. Amaldiçoa o Diabo que nele está durando tanto tempo. E geme baixinho, pedindo que nada nunca termine.


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