São Paulo, sábado, 04 de fevereiro de 2006

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LIVROS

ROMANCE


Novo livro do autor de "A Praia" acompanha vida de homem inconsciente

Em "Coma", Alex Garland mistura delírio e realidade

ALEXANDRE MATIAS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Do mesmo jeito que com uma ruptura violenta em um paraíso terrestre Alex Garland atingiu seu grande momento literário, ao amarrar seu novo protagonista a si mesmo o autor inglês parece caminhar para um beco sem saída, mas não do ponto de vista literário. Ao deixar os conflitos exteriores de seus dois primeiros livros fora do horizonte, Garland e o pai, Nicholas, embarcam numa viagem sem volta em "Coma", que acaba de sair no Brasil.
A história é simples e o tema é quase clichê: Carl sai tarde do trabalho e toma uma surra ao se meter numa tentativa de assalto. Entra em coma. A partir daí, imagina alternar momentos de consciência e vazios de razão, e a discussão reverte-se nas diferenças entre sono e despertar, fatos e lembranças, vida e morte.
Garland opta por uma estética enxuta, deixando maneirismos filosóficos e intelectuais de lado para discutir a existência, a natureza da consciência e os limites entre ser e não ser usando exemplos corriqueiros, como a lembrança dos pais, um perfume conhecido, uma loja de livros, uma música antiga (no caso, "Good Golly Miss Molly", de Little Richard). Contado em capítulos curtos, por vezes mínimos, o ritmo do livro se choca diretamente com o não-ritmo de um coma, o não-movimento contínuo.
Pontuando os capítulos estão 40 xilogravuras feitas pelo pai de Alex, o ilustrador Nicholas Garland, do jornal "Daily Telegraph". Escuras, elas são enormes janelas de tinta preta que apontam para o nada e tentam, como Carl, emoldurar alucinações e sonhos para apegar-se à alguma realidade -e saber se o coma, afinal, terminou. A morbidez sóbria das ilustrações, que distorce minimamente o caminho não-linear percorrido, tem um parentesco improvável com os quadrinhos negros do brasileiro Lourenço Mutarelli.
Diferente do livro de estréia do autor, o aclamado best-seller "A Praia", "Coma" mergulha num abismo em que até as emoções tornam-se incertas e os olhos nunca parecem estar abertos. Garland, que se envolveu com o mesmo trio dos filmes "Trainspotting" e "Cova Rasa" (o diretor Danny Boyle, o roteirista John Hodge e o produtor Andrew McDonald) na adaptação de seu primeiro livro para as telas, em 2000, pegou gosto pelo cinema e colaborou na adaptação de seu segundo livro, "O Teressacto" (dirigido pelo cineasta de Hong Kong Oxide Pang Chun, em 2003), além de criar uma história original para o filme seguinte de Boyle, "Extermínio", de 2002.
"Coma", com suas extraordinárias imagens simples, prova-se uma adaptação um pouco mais difícil, com o risco de perder momentos cruciais da leitura, como o vento no parapeito de um prédio, a sensação de transparência, um cômodo "sentido" em vez de visto, o mergulho no vazio, a perda da razão. Percorrer essas passagens dão ao curto livro um ritmo tenso e familiar, que torna possível deschavar a obra em menos de uma hora num sofá de megastore -e esquecer, por completo, tudo ao redor.
No entanto, é na modalidade clássica da atividade leitora (sozinho, de noite, em casa, um abajur) que "Coma" mostra-se forte. Num mundo hiperlinkado, de comunicadores móveis e exibicionismo histérico, o objeto livro pede que seu usuário entre em seu coma pessoal e desconecte-se do dito "real" para mergulhar em si mesmo.


Coma
   
Autor: Alex Garland
Editora: Rocco
Quanto: R$ 24 (160 págs.)


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