São Paulo, quarta-feira, 04 de fevereiro de 2009

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Angola paulistana

Construções esquecidas de Niemeyer e Ramos de Azevedo, no centro de SP, recebem galeria de arte africana e nova residência artística, ponte com Luanda

Fotos: Filipe Redondo/Folha Imagem
Funcionário ajusta iluminação de obra na galeria Soso, no centro de São Paulo

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

No volume máximo, o pagode grita nos alto-falantes das lojas. No chão em frente ao prédio, alguns sem-teto tentam dormir. Mas bem pouco do som nervoso do centro vaza para dentro do mais novo cubo branco de São Paulo, a imaculada Soso Arte Contemporânea Africana, galeria que será inaugurada amanhã no segundo andar do edifício Seguradoras.
Foi neste prédio quase esquecido de Oscar Niemeyer, na avenida São João, a alguns metros do vale do Anhangabaú, que se instalou a primeira galeria de arte africana do país.
"Mesmo que haja gente dormindo na rua, há segurança aqui", diz Mário de Almeida, empresário hoteleiro angolano, dono da Soso. "Este é o centro de uma das maiores cidades do mundo, e o centro de uma das maiores metrópoles do mundo não pode ser decadente."
Deslumbrado, Almeida conta à Folha que decidiu comprar o segundo andar do Seguradoras quando soube que era um projeto de Niemeyer, pelo qual diz ter pago R$ 300 mil. Desembolsou mais R$ 1,5 milhão para comprar o antigo Hotel Central, projeto de Ramos de Azevedo, do outro lado do calçadão da avenida São João.
"As pessoas querem prédios com assinatura", afirma o secretário municipal da Cultura, Carlos Augusto Calil, que está tocando agora um projeto de revitalização da área, a chamada "praça das artes", orçado em R$ 100 milhões. "Essas iniciativas espontâneas de empresários nos sinalizam que há uma demanda de parte da sociedade por prédios de qualidade."
Cada um dos 40 quartos do antigo hotel de Ramos de Azevedo vai receber artistas africanos para residências a partir de agora, sendo que em maio cada apartamento abrigará uma instalação, parte de uma grande mostra que integra o calendário da próxima Trienal de Luanda, marcada para 2010.
A reforma do hotel, que deve ser concluída em 2011, está orçada por Almeida em cerca de R$ 11,6 milhões -valor que deve vir do próprio bolso, mas terá parte captada por leis de incentivo e créditos do BNDES.
"Eu já fiz isso em Angola, investir numa área decadente, que depois vira motor do desenvolvimento", diz Almeida. "Eu tenho um complexo em Luanda que era uma construção do século 18, um armazém destelhado, que hoje virou um grande espaço de lazer."
Almeida, casado com a filha do cantor Djavan, não descarta também a possibilidade de sua atual residência artística virar hotel de luxo no futuro, algo na linha dos "concept hotels" que pipocam pelo mundo, sendo que "cada quarto será uma possível instalação de arte".

Artista como epicentro
No lado artístico da jogada, Almeida também não faz feio. Tem o apoio do artista e curador angolano Fernando Alvim, responsável pelo primeiro pavilhão africano na Bienal de Veneza, em 2007, e também mentor da Trienal de Luanda.
"Venho de uma situação particular em Angola, em que artistas têm de ser curadores, críticos e galeristas ao mesmo tempo, porque não temos os sistemas da arte", conta Alvim. "Por isso consideramos o artista o epicentro de um fenômeno cultural e criamos um movimento cultural para tentar legitimar a arte africana."
Alvim é também vice-presidente da Fundação Sindika Dokolo, por trás da maior coleção de arte contemporânea africana do mundo, com mais de 3.000 peças, e em parte responsável pelos gastos dos artistas angolanos que participam da nova residência paulistana, grande aposta da fundação.
"É importante uma galeria que mostra um pouco da África, mas com uma versão da história contada por nós mesmos", diz Alvim. "Queremos o comando da nossa própria história, já que ninguém sabe mais disso do que nós mesmos."
São Paulo acaba surgindo então como vitrine da produção contemporânea africana e contraponto a Veneza, que, nas palavras de Alvim, "já morreu".
"No pavilhão africano, pusemos líderes políticos que lutaram pelo fim do preconceito, porque achamos que Veneza era preconceituosa", afirma Alvim. "Foram 112 anos sem arte africana, e ainda fomos submetidos a um júri mais incompetente do que nós. Não é preciso passar por Veneza para fazer arte contemporânea."


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