São Paulo, quinta-feira, 04 de fevereiro de 2010

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ANÁLISE

O homem que desafiou Hemingway

JUAN CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escritor argentino Tomás Eloy Martínez, morto no último domingo, aos 75, gostava de coincidências. "O Voo da Rainha" (ed. Objetiva), romance com o qual ganhou o Prêmio Alfaguara em 2002, nasceu de um acaso, neste caso brasileiro.
Andava pelo Brasil e topou com uma extravagante história de amor protagonizada por um não menos extravagante diretor de jornal; nela estavam todos os elementos de soberba de que é capaz a alma humana, e ele guardou os detalhes do mesmo modo como tomava nota dos gestos e dados de suas crônicas: para quando essa história entrasse nas histórias que lhe fossem ocorrendo.
Um dia se propôs a gestar um romance com esses dados, e daí saiu a espetacular excursão imaginativa pela alma dos homens que é esse livro singular.
"O Voo da Rainha" nasceu como anedota e converteu-se em metáfora da soberba. Como se fez o milagre? Com a escrita.
Martínez era o melhor jornalista-escritor da América ibérica deste último meio século; sua morte é uma amputação grave de nosso sistema narrativo.
Foi um mestre singular, pois não proclamou seu magistério dizendo o que se devia fazer.
Apresentou-o fazendo. Foi cronista, jornalista, escritor de diários. E fez tudo isso trabalhando, ao pé da pena com a qual se anotam as coincidências...
Se sabia algo, os leitores teriam que sabê-lo. Não se demorou procurando coisas no lixo, mas contou o lixo. Quando teve que contar o sublime, usou também as armas de uma sensibilidade que agora subsiste, na história, como arte maior do jornalismo e da literatura.
Desafiou Hemingway, que dizia que uma só pessoa não podia ser jornalista e escritor.
Nesse livro, assim como em "Purgatório" ou em "O Romance de Perón" (ambos lançados aqui pela Companhia das Letras), Martínez é as duas coisas ao mesmo tempo, mas sempre tem claro (tinha claro -é difícil escrever sobre ele no passado) onde estão as armas do que conta para fabular e onde estão as armas do que conta para que os fatos fiquem claros.
Essas duas funções, a do jornalista e a do escritor, as exerceu com uma vontade férrea para colocar as fronteiras em seus lugares. Os fatos e as coincidências lhe serviram para os dois ofícios, e isso o manteve atento a tudo o que se movia.
A coincidência, na literatura e no jornalismo, existe para ser trabalhada. Martínez levava pelo mundo sua memória pronta, e aquela história do Brasil grudou nele, assim como grudaram no amigo Gabriel García Márquez as borboletas que iam atrás dos personagens de Aracataca. Martínez memorizava os fatos, que já habitavam em sua memória refinada até que se convertiam em fábulas extraordinárias. Foi esse o caso de "O Voo da Rainha", talvez seu melhor livro de ficção.
Mas o prazer de lê-lo, de ler esse livro tão brasileiro, embora o tenha feito tão argentino, era equivalente ao prazer de escutá-lo. Por trás desse romance está a anedota, quase uma categoria, daquele jornalista ambicioso que desrespeita todas as regras para apoderar-se da vontade das mulheres que ama.
Mas a própria escrita, o desenvolvimento em código de ficção daquele anedotário suculento e inacreditável, está no livro como o voo de um romance. Não se pode confundir em momento algum o relato do que lhe ocorreu com o que de fato ocorreu. Algumas vezes eu o ouvi dizer que escrevia como se houvesse alguém no assento ao lado em um trem, que tivesse acabado de conhecer esse alguém e sentisse a necessidade inadiável de lhe relatar algo que acabava de lhe ocorrer.
Ouvi muitas vezes Martínez contar a história do personagem Camargo, de nome e sobrenome bem brasileiros. Há uma foto dele com o espanhol Jorge Semprún em que está lhe contando essa história. E Semprún ri, assim como eu mesmo, que também estou na foto.
Agora leremos seu livro "Lugar Común la Muerte" (lugar comum a morte; inédito no Brasil) e nos perguntaremos outra vez de onde viria esse motor narrativo que convertia em objeto de memória e escrita tudo o que tocava. Um escritor excepcional que pulverizou lugares comuns de Hemingway.
Quem me deu a notícia de sua morte foi Mercedes Barcha, mulher de Gabriel García Márquez, em Cartagena de Índias.
Gabo disse: "Era um amigo. O melhor de todos nós". Era de sua estirpe, da estirpe dos escritores que vão ouvindo para poder contar. E nessa habilidade em ouvir o ritmo interior da terra, portanto da alma humana, estava a chave de sua capacidade de encantar, fabulando.
A coincidência era seu material: estar ali para ouvir. Hemingway teria gostado que um narrador assim o desafiasse.


Tradução de Clara Allain

JUAN CRUZ é escritor e jornalista espanhol, diretor-adjunto do jornal "El País"


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