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ANÁLISE
O homem que desafiou Hemingway
JUAN CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O escritor argentino Tomás
Eloy Martínez, morto no último domingo, aos 75, gostava de
coincidências. "O Voo da Rainha" (ed. Objetiva), romance
com o qual ganhou o Prêmio
Alfaguara em 2002, nasceu de um acaso, neste caso brasileiro.
Andava pelo Brasil e topou
com uma extravagante história
de amor protagonizada por um
não menos extravagante diretor de jornal; nela estavam todos os elementos de soberba de
que é capaz a alma humana, e
ele guardou os detalhes do
mesmo modo como tomava nota dos gestos e dados de suas
crônicas: para quando essa história entrasse nas histórias que
lhe fossem ocorrendo.
Um dia se propôs a gestar um
romance com esses dados, e daí
saiu a espetacular excursão imaginativa pela alma dos homens que é esse livro singular.
"O Voo da Rainha" nasceu como anedota e converteu-se em metáfora da soberba. Como
se fez o milagre? Com a escrita.
Martínez era o melhor jornalista-escritor da América ibérica
deste último meio século; sua morte é uma amputação grave de nosso sistema narrativo.
Foi um mestre singular, pois
não proclamou seu magistério dizendo o que se devia fazer.
Apresentou-o fazendo. Foi cronista, jornalista, escritor de diários. E fez tudo isso trabalhando, ao pé da pena com a qual se anotam as coincidências...
Se sabia algo, os leitores teriam que sabê-lo. Não se demorou procurando coisas no lixo,
mas contou o lixo. Quando teve
que contar o sublime, usou
também as armas de uma sensibilidade que agora subsiste,
na história, como arte maior do jornalismo e da literatura.
Desafiou Hemingway, que
dizia que uma só pessoa não podia ser jornalista e escritor.
Nesse livro, assim como em
"Purgatório" ou em "O Romance de Perón" (ambos lançados
aqui pela Companhia das Letras), Martínez é as duas coisas
ao mesmo tempo, mas sempre
tem claro (tinha claro -é difícil
escrever sobre ele no passado)
onde estão as armas do que
conta para fabular e onde estão
as armas do que conta para que
os fatos fiquem claros.
Essas duas funções, a do jornalista e a do escritor, as exerceu com uma vontade férrea
para colocar as fronteiras em
seus lugares. Os fatos e as coincidências lhe serviram para os
dois ofícios, e isso o manteve
atento a tudo o que se movia.
A coincidência, na literatura
e no jornalismo, existe para ser
trabalhada. Martínez levava
pelo mundo sua memória
pronta, e aquela história do
Brasil grudou nele, assim como
grudaram no amigo Gabriel
García Márquez as borboletas
que iam atrás dos personagens
de Aracataca. Martínez memorizava os fatos, que já habitavam em sua memória refinada
até que se convertiam em fábulas extraordinárias. Foi esse o
caso de "O Voo da Rainha", talvez seu melhor livro de ficção.
Mas o prazer de lê-lo, de ler
esse livro tão brasileiro, embora o tenha feito tão argentino,
era equivalente ao prazer de escutá-lo. Por trás desse romance
está a anedota, quase uma categoria, daquele jornalista ambicioso que desrespeita todas as
regras para apoderar-se da
vontade das mulheres que ama.
Mas a própria escrita, o desenvolvimento em código de
ficção daquele anedotário suculento e inacreditável, está no
livro como o voo de um romance. Não se pode confundir em
momento algum o relato do
que lhe ocorreu com o que de
fato ocorreu. Algumas vezes eu
o ouvi dizer que escrevia como
se houvesse alguém no assento
ao lado em um trem, que tivesse acabado de conhecer esse alguém e sentisse a necessidade
inadiável de lhe relatar algo que acabava de lhe ocorrer.
Ouvi muitas vezes Martínez
contar a história do personagem Camargo, de nome e sobrenome bem brasileiros. Há
uma foto dele com o espanhol
Jorge Semprún em que está lhe
contando essa história. E Semprún ri, assim como eu mesmo,
que também estou na foto.
Agora leremos seu livro "Lugar Común la Muerte" (lugar
comum a morte; inédito no
Brasil) e nos perguntaremos
outra vez de onde viria esse
motor narrativo que convertia
em objeto de memória e escrita
tudo o que tocava. Um escritor
excepcional que pulverizou lugares comuns de Hemingway.
Quem me deu a notícia de
sua morte foi Mercedes Barcha,
mulher de Gabriel García Márquez, em Cartagena de Índias.
Gabo disse: "Era um amigo. O
melhor de todos nós". Era de
sua estirpe, da estirpe dos escritores que vão ouvindo para
poder contar. E nessa habilidade em ouvir o ritmo interior da
terra, portanto da alma humana, estava a chave de sua capacidade de encantar, fabulando.
A coincidência era seu material: estar ali para ouvir. Hemingway teria gostado que um
narrador assim o desafiasse.
Tradução de Clara Allain
JUAN CRUZ é escritor e jornalista espanhol, diretor-adjunto do jornal "El País"
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