São Paulo, quinta-feira, 04 de fevereiro de 2010

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Lado a lado

A convite da Folha, os escritores Vanessa Barbara, Xico Sá e Joca Reiners Terron relatam suas experiências em restaurantes caros e apertados

A vida dos outros

Filipe Redondo/Folha Imagem
Piselli r. Pe. João Manuel,1.253, Cerqueira César,tel.0/xx/11/3081-6043

VANESSA BARBARA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Cidão só fala bobagem.
Ele é venenoso, fuxiqueiro e, segundo uma mulher de óculos, tem o pé grande. Não conheço o Cidão, mas é como se conhecesse: só se falou nisso na mesa ao meu lado, no restaurante Piselli. Em meio à decoração de latas de ervilha e garçons que se espremem para passar entre as cadeiras, a clientela vai ficando mais barulhenta em razão direta ao esvaziamento da adega.
Na mesa maior, ninguém segura a maledicência contra o Cidão. Até a senhora sentada com o marido atrás de mim já sabe que o supracitado usa camiseta regata, promove "churrascos poéticos" e arrumou encrenca com um delegado, numa história longa e sem sentido que foi interrompida com a chegada da conta.
Em restaurantes com mesas muito próximas, os homens são os que falam mais alto, sobretudo se estiverem tentando impressionar alguém na outra ponta do recinto. No Piselli, sexta à noite, é normal haver um burburinho geral e indistinto, mas também é possível escutar intimidades, conselhos, bravatas, frases sem sentido ("ele abriu uma cratera na minha cabeça") e impressões aleatórias sobre qualquer tópico do conhecimento humano. A menção a Nova York foi ouvida seis vezes, contra duas ocorrências da palavra "ético" e uma de "calefação".
Um jovem casal passou uns bons dez minutos se arrependendo da sobremesa escolhida, antes mesmo que ela chegasse.
Do outro lado do salão, um rapaz com bronzeado cor de laranja exclamou: "Não tem salsicha aqui nesta merda!", no contexto de uma narrativa prolixa que se desenrolava havia cerca de 15 minutos.
Além do entretenimento involuntário e da variedade de opiniões sobre assuntos de interesse geral, a vantagem das mesas coladas é que se pode julgar impiedosamente os vizinhos. A poucos palmos de distância, é absolutamente razoável rotular uma mulher de megera e um homem de moleirão, num relacionamento que, a julgar pela conversa, vai durar no máximo até domingo. Ao meu lado, havia um desses casais: ela monopolizava a conversa e falava com a boca cheia.
Quando ele manifestou opinião própria sobre um assunto, ela discordou com um seco "não" e ele reconsiderou: "É, pode ser". A mulher prosseguiu, triunfante: "Querer, eu não quero. Mas não significa que eu desquero". São momentos como esse que me fazem gostar de música ao vivo.


VANESSA BARBARA é jornalista, tradutora e cronista. Publicou "O Livro Amarelo do Terminal", Prêmio Jabuti de reportagem, e "O Verão do Chibo", com Emilio Fraia.


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