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Lado a lado
A convite da Folha, os escritores Vanessa Barbara, Xico Sá e Joca Reiners
Terron relatam suas experiências em restaurantes caros e apertados
A vida dos outros
Filipe Redondo/Folha Imagem
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Piselli r. Pe. João Manuel,1.253, Cerqueira César,tel.0/xx/11/3081-6043
VANESSA BARBARA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Cidão só fala bobagem.
Ele é venenoso, fuxiqueiro e,
segundo uma mulher de
óculos, tem o pé grande. Não
conheço o Cidão, mas é como se conhecesse: só se falou
nisso na mesa ao meu lado,
no restaurante Piselli. Em
meio à decoração de latas de
ervilha e garçons que se espremem para passar entre as
cadeiras, a clientela vai ficando mais barulhenta em
razão direta ao esvaziamento da adega.
Na mesa maior, ninguém
segura a maledicência contra o Cidão. Até a senhora
sentada com o marido atrás
de mim já sabe que o supracitado usa camiseta regata,
promove "churrascos poéticos" e arrumou encrenca
com um delegado, numa história longa e sem sentido que
foi interrompida com a chegada da conta.
Em restaurantes com
mesas muito próximas, os
homens são os que falam
mais alto, sobretudo se estiverem tentando impressionar alguém na outra
ponta do recinto. No Piselli, sexta à noite, é normal
haver um burburinho geral e
indistinto, mas também é
possível escutar intimidades, conselhos, bravatas, frases sem sentido ("ele abriu
uma cratera na minha cabeça") e impressões aleatórias
sobre qualquer tópico do conhecimento humano. A
menção a Nova York foi ouvida seis vezes, contra duas
ocorrências da palavra "ético" e uma de "calefação".
Um jovem casal passou
uns bons dez minutos se
arrependendo da sobremesa escolhida, antes
mesmo que ela chegasse.
Do outro lado do salão, um
rapaz com bronzeado cor de
laranja exclamou: "Não tem
salsicha aqui nesta merda!",
no contexto de uma narrativa prolixa que se desenrolava havia cerca de 15 minutos.
Além do entretenimento
involuntário e da variedade
de opiniões sobre assuntos
de interesse geral, a vantagem das mesas coladas é
que se pode julgar impiedosamente os vizinhos.
A poucos palmos de distância, é absolutamente razoável rotular uma mulher
de megera e um homem de
moleirão, num relacionamento que, a julgar pela conversa, vai durar no máximo
até domingo. Ao meu lado,
havia um desses casais: ela
monopolizava a conversa e falava com a boca cheia.
Quando ele manifestou opinião própria sobre um assunto, ela discordou com um
seco "não" e ele reconsiderou: "É, pode ser". A mulher
prosseguiu, triunfante:
"Querer, eu não quero. Mas
não significa que eu desquero". São momentos como esse que me fazem gostar de
música ao vivo.
VANESSA BARBARA é jornalista, tradutora e cronista. Publicou "O Livro Amarelo do
Terminal", Prêmio Jabuti de reportagem, e
"O Verão do Chibo", com Emilio Fraia.
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