São Paulo, quinta-feira, 04 de fevereiro de 2010

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Os solitários famintos

Marcelo Justo/Folha Imagem
Le Marais r. Jerônimo da Veiga,30,Itaim Bibi,tel.0/xx/11/3071-2873

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

No sábado passado fui jantar no Le Marais sem nenhuma esperança de encontrar Chico Buarque caminhando por lá, pois sabia que -apesar dos comoventes esforços dos restaurateurs- o Itaim ainda não é o bairro francês predileto de nove entre dez nobres (nem que sejam da música plebeia).
Não ver o lépido Chico naqueles corredores estreitos foi alívio e desconsolo simultâneo. Como o espaço entre as mesas não era bem o de uma rodovia Ayrton Senna, alta velocidade não convinha ao salão. Por outro lado, escassos papos salutares eram entreouvidos de mesas perigosamente vizinhas.
É evidente que não sou a versão gourmet de J.D. Salinger. Abstenho-me ao menu, sorrindo às crianças recalcitrantes ao lado. Dou boa noite às senhoras engasgadas sem perder a altivez por não obter respostas. Exibo espírito gregário e solar, mesmo não estando na Grécia e sendo de noite.
Ao chegar ao Le Marais, portanto, abanquei-me na mesa disponível para solitários famintos, alongando a espinha no sofá vermelho que cheirava a couro novo.
No teto, o belo vitrô teve sua missão de iluminar o ambiente eclipsado pelo cardápio plastificado de lanchonete que me era oferecido. Não me deixei abater pelo contraste kitsch e -optando pelo abatimento alheio- apontei o entrecôte.
Enquanto aguardava, maravilhei-me com uma encarniçada competição entre dois jovens casais bronzeados (certamente por desavisada exposição à neve alpina). Entre patos e outras aves de longa distância, os quatro decidiam quem entre si reunira maior número de milhagens nas
férias recém-encerradas. Para minha sedentária infelicidade, o espírito olímpico berrou acima da zoeira geral e a contenda não acabou em guerra de crème brûlée.
Foi então que o garçom interrompeu minha bisbilhotice de escritor com meu pedido. Espremido entre duas mesas maiores e baixando cotovelos para não desferir golpes mortais nas costelas de ambos os lados, sucumbi ao júbilo da carnificina até nova interrupção.
Alternando dedinhos para cima como num corso carnavalesco e aos gritos, minha vizinha sobrepujava a surdez do sogro logo adiante, convidando-o a passar o Carnaval em Miami: "Vamos, vovô, as crianças vão adorar!" Pisquei para o velho, buscando lhe soprar a resposta ("Prefiro não fazê-lo"). Foi tarde: ele aceitou.


JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina", entre outros livros.


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