São Paulo, sexta-feira, 04 de fevereiro de 2011

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CARLOS HEITOR CONY

Cena doméstica dos anos 60


O jeito era uma reforma em sua TV, uma reforma de base como João Goulart prometia fazer no campo


O APARELHO era antigo, mas ainda funcionava, resistia bravamente, mas, naquela tarde de setembro, o som pifou. E depois pifou a imagem.
Mudo, apagado, era um traste inútil no quarto das meninas, que abriram a boca, logo agora que vinha o Ray Charles, e elas sem televisão própria, detestavam os programas que o pai via no gabinete, alguma coisa tinha de ser feita. Providenciou um técnico, o homem veio suado de outros telhados, ele sempre cismava que o defeito era na antena, mesmo assim olhou tudo, meteu uns negócios lá atrás, abanou a cabeça:
-É o VHF.
Ele não sabia o que era VHF, mas aí estava, o VHF enguiçara e agora o jeito era um conserto amplo, uma reforma em sua TV, uma reforma de base como o governo de João Goulart prometia fazer no campo, livrando-o dos latifúndios. Então tomou ódio do velho aparelho e avisou às meninas:
-Vou comprar outra!
Houve alegria nelas e remorso nele. Fechou-se no gabinete para fazer os cálculos e até que não havia feito besteira, o dinheiro estava entrando regularmente, os livros vendiam bem, mesmo comprando um carro novo poderia encarar uma televisão mais moderna, elas mereciam -e foi correndo pegar o comércio aberto.
Até que o aparelho chega. As crianças estão na escola e ele quer que tudo esteja pronto para o regresso delas. O homem da loja recomenda não mexer no aparelho, que esperasse o técnico autorizado do fabricante, mas ele está aflito, resolve ligar por conta própria.
Sente no dedo um calor, depois um choque. Pior é o estrondo na tomada, a chama azul que inesperadamente brota daqueles furinhos que parecem o focinho de um porco. A cozinheira berra lá de dentro, a luz apagara justo na hora de bater a massa de um bolo que ela prometera. O remédio era trocar os fusíveis. "Por que inventam essas coisas?"
Quando encaixa os fusíveis, novo estrondo e novas trevas. Então procura o curto. Volta ao aparelho, tira a tampa traseira, olha tudo com cara de entendido, mexe numas placas, aperta aqui e ali, toma novos choques, arrebenta a cabeça de um parafuso, trinca o dedo no alicate.
O suor desce-lhe pelo rosto, as mãos estão escalavradas. Lembra-se de apelar para a ignorância, de dar uns tropeções, talvez engatasse os fios, e esmurra o aparelho, de cima para baixo, dos lados, até que, de repente, vê um fio desligado e suspeito.
-É aquele ali.
Liga. Sai fumaça pelos cantos, um forte cheiro de queimado. Novos solavancos, novos choques, palavrões, na ponta do dedo uma dor súbita e lancinante, deixara a unha embaixo do móvel, a luz de cima apaga de repente, e de repente acende outra vez, ouve um ruído dentro do aparelho e, inesperadamente, como um milagre em preto e branco, aparece na tela a cara de dom Hélder Câmara. Não há som, apenas a ascética magreza de dom Hélder, bem nítida, sorrindo para ele e para sua dor.
-Bom, -pensa- devo ter morrido, meti o dedo em alguma alta voltagem, eis que cumpri meus dias na face da Terra e, livre do desterro, retorno à casa de meu Pai, e eis que vem dom Hélder, embora vivo, receber-me, dar-me as boas-vindas e introduzir-me no paraíso celestial.
Faz um ligeiro exame de consciência para descobrir qual a virtude ou qual o santificado feito que lhe valeram a bem-aventurança eterna. Não lembra de nada, só mesmo do vatapá que comera na última Feira da Providência promovida por dom Hélder, não gostava de vatapá nem da Providência, mas fora arrastado, lá o obrigaram a comer e a pagar o vatapá em solidariedade às vítimas de um incêndio no Paraná. Talvez fosse isso, bastava, às vezes, um vatapá comido em solidariedade para se conquistar o Reino dos Céus.
O dedo continua doendo. Vai fazer mau juízo daquele paraíso quando a fraca voz de dom Hélder faz-se ouvir. Está num programa vespertino, anunciando não a Glória Eterna, mas uma geladeira de 11 pés. O dedo dói cada vez mais, sente o sangue brotar sob a unha machucada.
Em todo caso, a TV ali está, funcionando. Roda os botões e dom Hélder some, surge a cara subnutrida de um calouro no programa do Chacrinha. Basta isso e se convence de que ainda está no inferno.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Fernanda Torres


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