São Paulo, sábado, 04 de março de 2000


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Brasil publica clássico de Darwin 128 anos depois

Reprodução
O naturalista britânico Charles Darwin, cujo "A Expressão das Emoções" chega agora ao Brasil



Chega ao país "A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais"; sai ainda "Cartas" do britânico e nova versão de biografia



ALVARO MACHADO
especial para a Folha


O gênio científico já contava mais de 60 anos de uma vida assombrosamente produtiva quando avisou: "É sempre recomendável perceber claramente nossa ignorância". A frase de Charles Darwin (1809-1882) está no terceiro capítulo de seu livro "A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais", de 1872.
Passados 128 anos da primeira publicação dessa obra na Inglaterra, chega a hora de o Brasil diminuir, enfim, o grau de sua ignorância quanto à teoria da evolução das espécies, lendo uma primeira tradução do clássico. O volume chega pela Companhia das Letras, com fotos reputadas como as primeiras a servir à demonstração de uma tese científica, além de gravuras realizadas a partir de fotografias.
Se, por um lado, o hiato de mais de um século põe a nu a esquelética política educacional e a displicência histórica das elites brasileiras, a obra darwiniana em si está longe de ser associada a anacronismos. Desde o seu aparecimento, tornou-se um dos títulos científicos mais populares entre o público leigo, pela humanidade de suas observações e clareza da escrita. Simples amantes de animais domésticos costumam se comprazer com respostas a questões do gênero "Por que os cães abanam a cauda quando satisfeitos?" (pelo "princípio da antítese", ou seja, o animal assume atitudes contrárias àquelas que utiliza para atacar). Ou ainda: "Por que os gatos não gostam de molhar as patas?" (resposta: por inscrição genética, já que esses felinos habitaram originalmente as terras áridas do Egito).
A par de sua acessibilidade, "A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais" é um dos textos seminais do naturalista britânico, tendo contribuído para a criação da área do estudo do comportamento chamada etologia (hoje ramo das neurociências). O fato é lembrado no pequeno prefácio da presente edição, em texto pouco elucidativo, mas assinado pelo prestigioso Konrad Lorenz, para o qual, aliás, a Cia. das Letras deixou de dar créditos (etólogo vienense, Lorenz ganhou prêmio Nobel de Medicina em 1973 e morreu em 89).
O livro é um dos três que Darwin escreveu para apoiar, sob novos aspectos, as teses da seleção natural expostas em "A Origem das Espécies", publicado em 1859. Analisando a manifestação de sentimentos e a linguagem dos gestos, o cientista prova que também as expressões de emoções, no homem e nas espécies inferiores, obedecem a leis de hereditariedade. Ou, nas palavras do próprio autor, "o hábito de expressar nossos sentimentos por certos movimentos, apesar de agora inato, foi adquirido gradualmente" (pág. 28).
Considerado atualmente nos meios acadêmicos um sistematizador de idéias menos questionável que Marx e Freud, Charles Darwin permanece objeto de enorme interesse, como prova o sucesso da reedição deste mesmo "A Expressão das Emoções" em 1998, nos EUA, pela Oxford University Press. A editora brasileira chega a aludir, em material para a imprensa, a essa publicação organizada pelo psicólogo Paul Ekman, da Universidade da Califórnia. Estudioso das expressões faciais, Ekman escreveu prefácio e posfácio extensos, além de numerosas notas fornecendo estágio atual de idéias darwinianas. Infelizmente, o que a Cia. das Letras oferece agora é uma versão inteiramente "lisa", estabelecida pela Universidade de Chicago (1965), apenas com as notas centenárias de Darwin. São minoria as edições brasileiras de clássicos científicos nas quais colaboram intelectuais locais. No presente caso, também não há revisão especializada.
No entanto, aspectos dignos de comentário e ainda capazes de gerar polêmica não faltam ao livro. No ano passado, os textos de Darwin sobre a origem da vida foram retirados dos currículos de escolas dos Estados norte-americanos Kansas e Kentucky.
Porém, longe do escândalo causado por suas teses de evidência incontornável, o cidadão Darwin carregava o verniz de um homem de sua época vitoriana: polido, aparentemente crente em Deus e nacionalista. Em "A Expressão das Emoções", ele chega a sublinhar nas entrelinhas o domínio que os ingleses supostamente têm sobre suas reações nervosas. No pólo oposto, isto é, ao se referir a movimentos provocados por descarga nervosa violenta, insere seus compatriotas nos quadros dramáticos imaginados por William Shakespeare.
Aproveitando a deixa teatral, assinale-se que "A Expressão das Emoções" pode render leitura proveitosa para profissionais e amadores da cultura. Criadores de teatro e dança encontrariam embasamento para todo um método de interpretação nas descrições minuciosas de movimentos corporais, trejeitos e tiques, sejam eles devidos a um "hábito associado útil", a reações antitéticas ou descargas do sistema nervoso.
Também os estudiosos de literatura têm na escritura darwiniana bom material para investigar o fluxo da literatura nos últimos cem anos. A tarefa mais óbvia seria estabelecer elos entre a hereditariedade dos hábitos revelada por Darwin e as imperiosas mecânicas comportamentais dos personagens de Marcel Proust, no também fundamental "Em Busca do Tempo Perdido".


Livro: A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais (The Expression of Emotions in Man and Animals) Introdução: Konrad Lorenz Tradutor: Leon de Souza Lobo Garcia Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 26 (376 págs.)


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