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ERUDITO/DVD
A histérica, o cego e o irmão mais novo por Debussy
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Histeria, ciúme, incesto, assassinato. Estreada em 1902,
a ópera "Pélleas et Mélisande", de
Claude Debussy (1862-1918), sugere perfumes e delicadezas para
quem ouve de longe, mas traga
quem se aproximar num vórtex
de horrores humanos, raramente
igualados até na rica tradição de
horrores da ópera.
Interpretada em 1992 na Welsh
National Opera, sob regência de
Pierre Boulez e dirigida por Peter
Stein, "Pélleas" é a mais camerística das grandes óperas e só cresce
na versão em DVD, miniaturizada nos fones de ouvido e na tela
do laptop.
Histeria: já desde a primeira cena, a soprano Alison Hagley exerce incríveis seduções da mulher
inatingível, que "não sabe nada"
(a sua frase mais frequente), de
humor tão modulante quanto as
harmonias.
"Não me toque!", diz Mélisande, no primeiro encontro com
Golaud (Kenneth Maxwell), seu
futuro marido; e a partir daí não
há escapatória para o velho príncipe, claudicando "como um cego
que procura seu tesouro no fundo
do mar", enquanto o irmão mais
novo, Pélleas (Neill Archer), tem
sua chance de se apaixonar por
Mélisande.
Não há escapatória para os três,
na peça do escritor belga Maurice
Maeterlinck (1862-1949), que hoje
seria só um documento de época,
não fosse pela música de Debussy.
Por força dessa partitura, toda a
carga pesada de símbolos -floresta, cegos, noite, fonte, anel-
converte-se espantosamente em
verdade. Tudo é, e não é, o que se
vê. "A noite cai depressa", com os
sentidos dobrados que todas as
frases acabam ganhando aqui.
A maior virtude da montagem
de Peter Stein talvez seja essa, então: cada palavra, cada acento da
melodia ganha nova expressão
sentimental e sexual. Como se
qualquer gesto, qualquer arrepio,
qualquer suspiro tivesse força para revelar o que não se pode deixar de velar.
Com isso, cresce também a própria interpretação musical de
Boulez, onde cada uma das colcheias merece respeito. A genial
discrição do maestro serve de palco para as controladas indiscrições do teatro de Stein, onde violências sem par acontecem sem
um rastro de sangue. Belezas sem
par também.
Inesquecíveis negridões do cenário, cortadas por geométricas
linhas finíssimas de luz; inesquecíveis brilhos na água do fundo da
gruta, onde Mélisande e Pélleas
vêm procurar o anel de casamento perdido; inesquecíveis estrelas,
no vasto céu ao fundo da torre, de
onde caem os inesquecíveis cabelos da musa. Só esta cena já vale a
montagem, uma sucessão de delícias de um nas notas, nos cabelos
e nas mãos do outro, até o amorosíssimo, curto clímax da música.
Sua contraparte dramática é o
"Grand Guignol" de Golaud cavalgando a mulher, à vista do impotente avô.
Ciúme: tudo esbarra embriagado de seu lume, e as almas continuam, desde sempre, esticadas no
curtume. Valem ainda as palavras
do compositor Paul Dukas, há
cem anos: "O desenvolvimento
temático [da ópera" se dá não
apenas do ponto de vista musical,
mas profundamente psicológico,
e inteiramente novo". Mas valem,
agora, de um jeito inteiramente
novo, em profundezas das quais
não se sai nunca mais.
Pélleas et Mélisande, de Debussy
Artista: Boulez, Stein, Welsh National
Opera
Lançamento: Universal
Quanto: R$ 67, em média (dois DVDs)
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