São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2004

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GASTRONOMIA

A própria experiência

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

A cabei de ler o livro de memórias da Jancis Robinson, a inglesa de mais credibilidade no mundo dos vinhos, a loira famosa, condecorada pela rainha, que esteve aqui durante o festival Mais.Paladar, conduziu experimentações, bebeu, provou, deu palpite, fez admiradores que logo se inscreveram no seu ótimo site www.jancisrobinson.com.
O livro "Tasting Pleasures, Confessions of a Wine Lover" serve tanto para os mais entendidos como para os mais perfeitos inocentes, principalmente porque é bem escrito. A autora é fluente, engraçada e nos dá de bandeja a sua vida -sempre relacionada com vinhos: viagens, gentes, safras, paisagens, comidas. Experimenta vinhos, mas também os bebe com prazer à volta da mesa com os amigos.
Pesquei uma coisa que achei interessante, que é a opinião dela sobre aqueles que escrevem sobre a mesma matéria. Uma vez foi convidada a fazer o perfil de Robert M Parker Jr, o poderoso crítico de vinhos, americano. Ele começara em 1978 uma "newsletter" que se tornara uma publicação tão importante e séria que era capaz de mudar os caminhos do mercado do vinho americano. Na verdade, a diferença que introduziu foi a pontuação dos vinhos, as notas até 100, coisa então impensável do ponto de vista britânico.
Os comerciantes americanos diziam: "Se Parker dá 85 pontos a um vinho, ninguém compra. Se dá mais que 90 não se pode comprá-lo".
O que mais impressionou Jancis foi a capacidade de trabalho do homem. Era seguro, parecia não ter dúvida alguma e se interessava muito pouco pelo contexto humano e geográfico de um vinho. O seu trabalho era o de se postar diante das taças e garrafas, beber, ter uma reação, e expressá-la em pontos. Cem experimentações por dia, o que pode ser um esforço absurdo.
Jancis classificou-o como um crítico de vinhos, e ela própria como escritora de vinhos. Trabalhador e talentoso ele era. O resto não seria arrogância? Com o tempo viu que se enganara. A mola que o movia era a indignação. Ele se conscientizara de que era o único defensor do consumidor de vinhos da América. Os outros cozinhavam "releases" publicitários. E ele, como fruto da geração de Ralph Nader, passou a lutar por seus princípios.
O que incomodou Jancis -que o acompanhou em degustações- foi ver, que seguro como era, tinha, como todo mundo, suas preferências, e ela percebeu uma tendência dos produtores a fazerem o vinho-do-jeito-que-Parker-gostava, sem respeito à origens geográficas. O talento de Parker estava levando o mundo à parkerização, à uniformização, à padronização do vinho.
Os críticos ingleses, à certa altura, se irritaram contra o sistema de pontos, mas estavam em flagrante discordância com o consumidor que adorava esses números que os guiavam.
Qual seria a diferença entre o crítico americano e a própria Jancis, pôs-se ela a pensar.
A diferença maior é que ela queria educar o público, tirá-lo da condição de carneirinhos. Seu objetivo era instigar os leitores a fazerem escolhas baseadas nas suas próprias referências.
Jancis supõe que dificilmente a Inglaterra produziria um Parker, devido aos traços autodepreciativos e irônicos dos ingleses. E a sua luta, através de livros, viagens, programas de TV, tem sido essa, a de induzir o consumidor a escolher por si só, por achar que impressões de gosto estão mergulhadas no sistema nervoso e é difícil extraí-las e compará-las objetivamente entre duas pessoas diferentes.
O mais perto que chegamos é inventando analogias, como gosto de terra molhada e torrada queimada (quem se abalaria a sair de casa e comprar um vinho com esses sabores?).
Ela, a Master of Wine inglesa dá as dimensões mais quantificáveis do vinho, mais fáceis de serem medidas como teor alcoólico, acidez, doçura residual, graus de taninos, dimensões úteis ao comprador em potencial. O importante é o estilo, o corpo do vinho, e só com nossa experimentação é possível acabar com a longa lista de semelhanças a violetas umedecidas e groselhas verdes.
De todo jeito, ela consegue fazer de memórias que poderiam ser tão monótonas, histórias de uma inglesinha atrevida, bebendo a mais não poder, um livro bom, ótimo, eu diria, concluindo que o crítico de vinhos tem uma profissão tão abençoada, unindo prazer e trabalho, que deve se beliscar toda manhã para ver se tudo que lhe acontece é real. Com o que concordamos.


TASTING PLEASURES, CONFESSIONS OF A WINE LOVER.
Autora: Jancis Robinson. Quanto: R$ 40. Onde encontrar: www.amazon.com.

@ - ninahort@uol.com.br



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