São Paulo, quarta-feira, 04 de março de 2009

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MARCELO COELHO

O olho vestido de uniforme


O impacto do filme em 3D é tão grande que a gente até se esquece de comer a pipoca


DIZEM que as primeiras plateias de cinema, no final do século 19, assustavam-se com as imagens de uma locomotiva se aproximando da câmera. Tinham a impressão de que estavam na iminência de um atropelamento.
Não dá para ficar assustado com os tubarões, as barracudas e os polvos que aparecem na projeção em 3D do documentário "Fundo do Mar", em cartaz no Espaço Unibanco Pompeia, em São Paulo.
Mesmo assim, o espectador tem tudo para se sentir na pele daqueles seus tataravós estupefatos, nos primórdios do cinema mudo. A nova técnica de projeção, numa tela altíssima e bem curva, está quilômetros à frente daqueles velhos sistemas da década de 1950, com seus ridículos óculos de papelão e celofanes verdes e vermelhos.
Na entrada, você recebe uns óculos de "última geração", escuríssimos, que não fariam má figura no rosto de um piloto de caça supersônico, bombardeando o Iraque na calada da noite.
A escuridão é tamanha que não dá para ter ideia da cor das lentes. O formato daquele visor já me transporta para o mundo da ficção científica. Virei uma espécie de mutante: estou pronto para mergulhar no fundo do mar.
O cinema, dizia Kafka, "força o olho a usar um uniforme, enquanto até agora ele estava nu". O escritor reclamava, sem dúvida, daquela velocidade extrema, trêmula e entrecortada dos filmes mudos. "A rapidez dos movimentos e a sucessão precipitada das imagens condenam a uma visão superficial de maneira contínua. Não é o olhar que prende as imagens, são elas que prendem o olhar".
Aproximou-se de mim todo um corpo de baile de anêmonas brancas, translúcidas, sem dúvida homenageando um trecho de "Fantasia" de Walt Disney. Vieram depois nudibrânquios e uma lenta espécie de aranha marinha devoradora de vieiras.
À primeira vista, as imagens em 3D tinham muito para desmentir as críticas de Kafka: tudo transcorre devagar e não evoca aquela ideia de algo superficial e brilhante, que faz o cinema antigo parecer uma frágil lâmina de mercúrio derramada sobre a tela. O tempo de cada cena é calculado para permitir que penetremos, aos poucos, em cada uma das camadas dos cardumes e corais.
Logo aprendi, contudo, que era preciso me acostumar com uma nova forma de passividade, mais absoluta do que a mencionada por Kafka. Não adianta mover os olhos. É preciso esperar que o peixe venha até você. Tampouco a câmera se move muito: estamos em estado de pura recepção sensorial.
Os hábitos do espectador de cinema, treinado em passar das legendas ao rosto dos atores, da esquerda para a direita da tela, devem ser esquecidos em alguma medida. Se de repente eu ficasse mais ávido por ver algum detalhe submarino, minha visão se desorientava. Melhor esperar que viesse até mim.
Se desviasse um pouco os olhos, corria o risco de me deparar com uma coisa estranhíssima. Os espectadores à minha frente se destacavam como vultos obscuros, numa espécie de 3D alternativo, fora do 3D "real". Um homem entra com o saco de pipoca algumas fileiras abaixo de mim. Mas onde ele está, de fato? Não está no mar; mas é só o mar que, agora, constitui a realidade para mim.
De resto, o impacto do filme é tão grande que a gente até se esquece de comer pipoca.
Não tenho dúvida de que a nova técnica vai progredir. É a saída das salas de cinema, por enquanto, face à ameaça dos DVDs e dos "home theaters".
Como aconteceu no advento do cinema sonoro, o sistema ainda chama excessivamente a atenção sobre si mesmo, e vai demorar um pouco, acho, para que fluência narrativa e inventividade autoral se imponham sobre o mero prestígio da ilusão técnica. Damos de qualquer modo mais um passo no caminho previsto pelo poeta Saint-Pol Roux, na década de 20. Ele esperava o dia em que os atores e atrizes aparecessem inteiros na nossa sala de estar, Cleópatra e Júlio César, representando seus papéis junto conosco.
Na Inglaterra, encenaram uma peça de Tchecov para pouquíssimos espectadores, que ficam no próprio palco, jantando e bebendo com os personagens.
Se a moda pega, ilusão e realidade virtual acabam entrando em conflito. Ilusão exige alguma distância, algum véu a separar o sonho da vigília.
Abolido esse véu, o virtual acaba tomando conta; e começo a ter medo de ser devorado pelos tubarões que vi.

coelhofsp@uol.com.br


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