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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Salazar ressuscitado
A principal ameaça para uma democracia civilizada está no comportamento histérico de democratas incivilizados
ANTÓNIO DE Oliveira Salazar
(1889-1970), ditador durante
quatro décadas, ganhou um
concurso televisivo como o maior
português de todos os tempos. No
dia seguinte, camisas negras marcharam sobre Lisboa, tomaram conta do Parlamento e decretaram um
novo regime autoritário, de nítida
inspiração fascista. O povo saiu às
ruas e saudou os heróis.
O Partido Comunista foi ilegalizado, as prisões lotaram com presos
políticos e os intelectuais optaram
pelo exílio. O novo governo, com o
apoio do Exército, exige agora que o
presidente Lula devolva o corpo de
Marcello Caetano (enterrado no
Rio): Marcello será embalsamado e
exibido publicamente no Mosteiro
dos Jerónimos como relíquia sagrada, depois da fuga infame a que este
último governante foi sujeito durante a Revolução dos Cravos de 1974...
Foi mais ou menos por essa altura
que eu despertei do pesadelo, pronto para mergulhar em novo pesadelo. Sim, Salazar ganhou o concurso
de TV. Sim, Portugal continua um
regime democrático e liberal. Mas,
vocês não teriam tanta certeza se
lessem a imprensa dos nativos a respeito do fenômeno. Qual o significado da vitória de Salazar, 33 anos depois do 25 de Abril?
A opinião geral não perdeu um
minuto de tempo para usar os neurônios. A vitória de Salazar (na TV)
prenuncia simplesmente a vitória
do fascismo (na vida real). Intelectuais profundos decretaram imediatamente "o fracasso da democracia"
e o fim do "sonho de abril". Acadêmicos respeitados falaram em "ano
zero para os neo-salazaristas". O
Partido Comunista, nossa relíquia
stalinista, saiu da tumba e avisou os
seus militantes para terem muito
cuidado, porque "eles andam por
aí". No meio da loucura, valerá a pena colocar tudo na sua devida proporção?
Correndo o risco de vestir uma camisa negra e de marchar também
sobre Lisboa, talvez seja importante
lembrar duas coisas.
A primeira, óbvia, é que Salazar foi
escolhido em concurso de TV por 65
mil pessoas. O show foi um flop de
audiência e 65 mil só espantam pela
sua evidente escassez. Em Portugal,
existem mais do que 65 mil salazaristas. Procurar ver em 65 mil telefonemas o fim da democracia lusa não
é apenas ridículo e infantil. É a prova, essa sim preocupante, de que a
massa cinzenta de nossos intelectuais e acadêmicos derreteu para lá
do tolerável.
A segunda, ainda mais óbvia, é que
os 65 mil votos não são exclusivos de
salazaristas. Pessoalmente falando,
conheço gente liberal e bem democrática que votou em Salazar para
criar polêmica. Sobretudo quando a
TV do Estado começou por censurar
o nome do ditador de sua seleção
inicial. Por ironia macabra, a escolha
de Salazar pode ser vista como
exemplo de liberdade e de luta contra a censura: a censura que Salazar,
ontem, e a RTP, hoje, pretenderam
aplicar sobre os patrícios.
Na brincadeira dos grandes portugueses, não são os mortos que assustam. São os vivos. Nos últimos dias,
eles mostraram que a principal
ameaça para uma democracia civilizada está no comportamento histérico de democratas incivilizados.
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