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CARLOS HEITOR CONY
Verdades e mentiras do cinema
O cinema, para Glauber Rocha, era um duende infantil que habitava
as salas escuras
QUANDO A criancinha no colo
da mãe disse que o rei estava
nu, ninguém pensou em promover um ato público em defesa da
roupa inexistente e do rei pelado.
Discretamente, os áulicos da comitiva real devem ter feito uma barreirinha, protegendo a nudez do
monarca, que logo voltou ao palácio
e se colocou em trajes convencionais.
Pulo do conto do Hans Christian
Andersen diretamente para a sessão
de cinema aqui no Rio onde um filme de Glauber Rocha estava sendo
exibido pela milésima vez.
Uma voz se levantou da platéia,
era de Madureira, não o subúrbio,
mas o humorista homônimo, que
declarou que o filme (não o Glauber)
era uma merda.
Estupor entre as cultas gentes!
Ranger de dentes!
Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao
povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro
Mundo que salvará a espécie humana das tiranias e do uso desenfreado
da Coca-Cola e dos filmes do Rambo?
Lembro uma sessão no velho
Polytheama, onde se exibia um filme de Kubrick, "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Silêncio sepulcral
na sala, dividida na platéia propriamente dita e no balcão, ambos lotados e perplexos.
Nem mesmo a música de Richard
Strauss quebrava o espanto de todos, antes, o acentuava, tornando-o
monumental, epifania de um futuro
que começaria naquele instante.
Uma voz vinda lá de cima, sarça
ardente queimando no Monte Sinai
instalado no largo do Machado, desceu como um pássaro de bronze avisando a todos:
- Estou entendendo tudo!
Ninguém se mexeu. Havia um
eleito que estava entendendo aquilo
tudo. Todos estavam salvos.
Voltando ao filme de Glauber, o
desabafo de Madureira produziu o
mesmo efeito.
Ninguém discordou, pelo contrário, todos ficaram mais convencidos
ainda da grandeza do filme.
Eu próprio, que não estava lá para
presenciar momento tão transcendental, folguei que afinal alguém
tentasse colocar as coisas no lugar.
Glauber é um gênio, não houve
outro entre nós. O diabo é que ele
não encontrou um veículo apropriado, caótico como ele, universal como
ele, para expressar a sua genialidade.
Teve de usar o material que estava
à sua disposição, um material fantástico, sim, mas impotente para
movimentar as turbinas submersas
que iluminariam o mundo que ele
pretendia criar.
Deu tiros em várias direções, partindo sempre do eixo imóvel de suas
raízes e de seu tempo -tempo que
ele criava com um grão de loucura
que não fazia sentido, mas fazia bonito, um bonito redundante, formado por lugares comuns gritados por
seus personagens ("O cinema do
Terceiro Mundo venceu o capitalismo ocidental na Guerra do Vietnã!")
ou brandidos por flâmulas coloridas
na ponta de fuzis descarregados
-todos os filmes dele têm esse balé
de bandeiras, estandartes que rodopiam enquanto uma voz em off, solene e ameaçadora, garante que o
homem vencerá o dragão.
Não há humor nem ironia em seus
filmes, as mensagens são as mesmas, extensas, com um sentido que
só ele entende: o fraco é o forte e o
forte é um filho da puta.
Faltou a Glauber ter inventado
uma arte que não fosse o cinema,
que transcendesse o cinema.
Poesia, romance, teatro, ópera,
embolada sertaneja, todas as expressões populares ou eruditas de
sua visão de mundo, tudo o que ele
tentou na busca de uma linguagem
própria, não passou de um genial delírio no qual ele acreditava, como se
tivesse a um passo da descoberta definitiva e vital.
Seria o caso de perguntar: o que o
cinema representava para Glauber
Rocha?
Na minha opinião, o cinema para
ele era um duende infantil, que habitava salas escuras, a cada sessão se
materializava, depois retornava à dimensão gasosa de uma coisa inexistente.
Dou um exemplo que parece não
ter nada com Glauber. Toda a vez
que passava em frente ao cinema
América, na praça Saens Peña, Adolpho Bloch pisava de mansinho e falava baixo.
Ali ele assistira em criança à "O
Corcunda de Notre Dame" diversas
vezes, pensava que o corcunda morava ali, se não estivesse trabalhando na tela, tocando o seu sino de
bronze, ele estaria ali nos seus domínios de duende, protegido pela escuridão do salão deserto, até que um
contra-regra diabólico o despertasse e o obrigasse a ser o monstro iluminado que metia medo nas criancinhas. Uma forma de ver e sentir o cinema como a verdade.
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