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Ferreira e Sayad polarizam debate
Em evento na Folha, ministro da Cultura e secretário de Estado de SP defendem visões opostas sobre a Lei Rouanet
Sayad classifica de inoportuna proposta do governo para mudar a lei; ministro diz que imobilismo teria efeito "nefasto"
DA REPORTAGEM LOCAL
"Fiz uma verdadeira ioga durante sua fala, para ficar calado.
É preciso fazer esse esforço."
Assim, o ministro da Cultura,
Juca Ferreira, desautorizou
um aparte do diretor da Apetesp (Associação de Produtores
de Espetáculos Teatrais do Estado de SP), Paulo Pélico, cujas
críticas Ferreira replicava.
Era um entre os muitos momentos de exaltação -e alguma comicidade- produzidos
pelo embate de visões antagônicas sobre a proposta do MinC
(Ministério da Cultura) para
reformular a Lei Rouanet, em
evento promovido pela Folha,
na noite de quinta, em SP.
A lei canaliza cerca de R$ 1
bilhão por ano para a produção
cultural, por meio de renúncia
fiscal. Mediado pelo editor da
Ilustrada, Marcos Augusto
Gonçalves, o debate entre Ferreira, Pélico, o secretário de Estado da Cultura de SP, João Sayad, o superintendente de Atividades Culturais do Instituto
Itaú Cultural, Eduardo Saron, e
o consultor de patrocínio empresarial, diretor-geral da Significa e da Articultura, Yacoff
Sarkovas, levou três horas e teve acalorada reação da plateia.
No centro do duelo entre
Ferreira e Pélico estava o bumba-meu-boi, manifestação de
arte popular, tomada como
símbolo das distintas opiniões
sobre a função da Lei Rouanet
no financiamento da cultura.
"Não podemos demonizar o
incentivo fiscal porque o bumba-meu-boi está sem apoio",
disse Pélico, sobre análise de
Ferreira de que, nos moldes
atuais, a Lei Rouanet concentra
recursos em projetos do Sudeste e em artistas consagrados.
"[Citar dessa forma o] Bumba-meu-boi é uma discussão
pejorativa. Vocês vão acabar
atraindo a antipatia do Brasil
para São Paulo", reagiu Ferreira. O ministro disse que "quem
tem acesso [à lei] evidentemente não quer perdê-lo. Não quer
ter critério público. Não quer
critério nenhum" e seguiu:
"Qualquer brasileiro tem direito de acesso à cultura. Todos os
brasileiros, inclusive os do
Piauí", no que foi aplaudido.
Mas a plateia aplaudiu e gritou "bravo!" também quando
Sayad expressou sua visão, contrária à reforma da lei, e questionou o senso de oportunidade
do MinC ao sugerir a mudança.
O secretário paulista polarizou
o debate com o ministro.
"No momento em que temos
expectativa de redução brutal
do lucro das empresas, vamos
adicionar uma incerteza a um
setor com uma infinidade de
pessoas? Elas vão ter que, além
de viver a crise, viver uma mudança não conhecida na Lei
Rouanet? Discordamos do projeto de lei. Achamos que é dirigista. Discordamos sobre a
oportunidade e discordamos da
estratégia [do MinC] para a cultura", afirmou Sayad.
A aura de insegurança que toma parte do setor cultural em
relação ao projeto não escapou
ao ministro. "É o velho medo.
Nada de medo. Diante do medo, devemos ter compaixão e
solidariedade. Mas, diante da
mistificação para gerar medo,
não tenho nenhum respeito".
Para reduzir temores de que
a reforma leve à redução de recursos para os produtores culturais e ao aumento do financiamento de projetos governamentais, o ministro se comprometeu a alterar o projeto:
"Vamos deixar claro que,
através do Fundo [Nacional de
Cultura] não haverá captação
nem para o governo federal,
nem os estaduais, nem os municipais. Vamos nos comprometer agora com isso".
Além da defesa da reforma da
lei (por Ferreira) e da avaliação
de que ela é desnecessária (por
Sayad), uma terceira opinião
despontou no debate, com Sarkovas: "Acho que as leis de incentivo deveriam ser extintas,
porque elas têm problemas estruturais impossíveis de ser
corrigidos com ajustes". Para
ele, é preciso estimular o mercado e deixar ao Estado a tarefa
de investir de acordo com uma
política cultural pública.
A seguir, os principais trechos do debate, cuja íntegra está disponível no endereço
www.folha.com.br/090931.
DIRIGISMO
Juca Ferreira - Na segunda
etapa [do funcionamento da
lei] tem dirigismo. Quem, em
última instância, define o que é
meritório para receber esses
recursos são os departamentos
de marketing das empresas. O
Estado faz dirigismo. E o mercado faz dirigismo. Basta que a
sociedade permita que o Estado faça dirigismo e que o mercado faça dirigismo.
João Sayad - Na medida em
que existe grande propósito de
aumentar recursos do Fundo
Nacional de Cultura, em detrimento dos outros, e intenção
legítima do ministério de ter
mais poder de decisão dos recursos destinados à cultura,
não há nada de errado, mas é
efetivamente modificação discricionária.
Yacoff Sarkovas - Quem
não teme dirigismo, censura,
apadrinhamento? Estabelecer
critério público não pode ser, a
priori, chamado de dirigismo.
Temos herança de um Estado
corrupto, apadrinhador de interesses de pequenos grupos. É
difícil aceitar a ideia de que recursos possam ser distribuídos
com lisura na esfera pública.
Ou a gente desiste da república
ou enfrenta essa questão.
Paulo Pélico - Ao transferir
para um decreto todos os poderes para montar as regras que
iriam nortear esse processo [de
seleção de projetos na Lei
Rouanet], [o governo] cria
grande brecha para o dirigismo
cultural. Em mãos erradas, isso
pode ser instrumento poderoso do alinhamento político e
ideológico, na lógica do torrão
de açúcar. Temos que nos precaver para que isso não venha a
acontecer. Se tem que entrar
no mérito [artístico dos projetos aspirantes ao patrocínio],
de que jeito e para quem?
VERBA CONCENTRADA
Ferreira - Aponto como
uma dificuldade que nem todos
os produtores culturais, independentemente de onde estão
localizados territorialmente
têm acesso à renúncia fiscal em
todo o território nacional. Temos concentração em certas
regiões. Mas é falso chamar essa discussão para uma discussão puramente territorial. A
desigualdade de acesso à cultura é enorme e boa parte da população está alijada.
Sayad - As informações que
o senhor [Ferreira] apresenta
sobre concentração [de recursos da Lei Rouanet] misturam
muitas coisas e não são um
diagnóstico correto. Já se confunde proponente [de projeto
cultural] com artista. Não concordo com suas análises sobre
a concentração. A arte paulista
só é acessível aos paulistas? Se
o proponente é a Natura ou o
Itaú Cultural não quer dizer
que ele vai financiar um artista
só ou um artista da região Sudeste. Há confusão [de conceitos] sobre artista local e bem
estadual. Se a Natura ou o Bradesco financiarem a Ivete Sangalo, onde o sr. vai colocar esse
resultado? Se for um artista
baiano, nós, paulistas, poderemos ouvi-lo? Esses índices são
problemáticos. Não indicam a
concentração que o sr. gostaria
de apontar na lei.
Eduardo Saron - Faltam
instrumentos que possam medir o impacto [da Lei Rouanet]
na economia da cultura. Me parece fundamental que o ministério tenha um organismo nesse campo. Cada real empregado na cultura quanto gera na
cadeia produtiva brasileira? Os
dados são ainda muito pontuais e restritos a um universo.
Temos que avançar nesse sentido, para ter ideias mais precisas sobre as injeções de verba
na cultura. O desequilíbrio precisa ser equalizado não pela diminuição do mecenato.
A (NÃO) MUDANÇA
Sayad - A opinião pública, irritada com o governo, com os
bancos, confunde os financiadores da cultura com os bancos
ou as empresas associadas a
ele. A lei de renúncia fiscal, do
ponto de vista político pode ser
facilmente criticada, como o
caso do Cirque du Soleil [autorizado a captar R$ 9,4 milhões].
Esses erros, que ocorreram há
muito tempo, não requerem
mudança da lei, mas mudança
do gerenciamento da lei, que
está congestionada, como o sr.
reconhece.
Ferreira - Assumam a responsabilidade sobre essa proposta, porque ela tem consequência desastrosa para a área
cultural. Estamos vivendo uma
dificuldade objetiva, que é a
crise econômica que chegou ao
Brasil. Desde outubro passado
há retração de adesão à Lei
Rouanet. As empresas recuaram. Essa proposta imobilista é
nefasta. Dá aparente segurança, mas é o desastre da área cultural. É um erro, e eu estou denunciando aqui.
A FAVOR
A atriz Maria Alice Vergueiro, 74, concorda com o ministro
Juca Ferreira: "A lei beneficia
um círculo vicioso das empresas, que usam a verba para projetar a sua imagem. O resultado
são produções raquíticas, que
ficam apenas dois meses em
cartaz, enquanto peças experimentais e grupos que fazem
pesquisa não têm vez", disse. "E
foi pejorativo o que se falou sobre o Bumba Meu Boi. Sinto-me uma Bumba Minha Vaca,
pois não tenho oportunidade."
CONTRA
Para o ator e produtor Odilon
Wagner, 54, há uma má gestão
do Fundo Nacional de Cultura
(FNC) e o ministro tem confrontado "os setores da cultura
entre si, enquanto o confronto
deveria ser com os ministérios
da Fazenda e do Planejamento
para obter orçamento maior".
Já a atriz Beatriz Segall, 82, disse que há, sim, dirigismo nas
propostas de mudança. "Como
ele pode propor transparência
se ele mesmo não aceita o diálogo e não aceita as críticas?"
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