São Paulo, sábado, 04 de abril de 2009

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Ferreira e Sayad polarizam debate

Em evento na Folha, ministro da Cultura e secretário de Estado de SP defendem visões opostas sobre a Lei Rouanet Sayad classifica de inoportuna proposta do governo para mudar a lei; ministro diz que imobilismo teria efeito "nefasto"

DA REPORTAGEM LOCAL

"Fiz uma verdadeira ioga durante sua fala, para ficar calado. É preciso fazer esse esforço."
Assim, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, desautorizou um aparte do diretor da Apetesp (Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de SP), Paulo Pélico, cujas críticas Ferreira replicava.
Era um entre os muitos momentos de exaltação -e alguma comicidade- produzidos pelo embate de visões antagônicas sobre a proposta do MinC (Ministério da Cultura) para reformular a Lei Rouanet, em evento promovido pela Folha, na noite de quinta, em SP.
A lei canaliza cerca de R$ 1 bilhão por ano para a produção cultural, por meio de renúncia fiscal. Mediado pelo editor da Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves, o debate entre Ferreira, Pélico, o secretário de Estado da Cultura de SP, João Sayad, o superintendente de Atividades Culturais do Instituto Itaú Cultural, Eduardo Saron, e o consultor de patrocínio empresarial, diretor-geral da Significa e da Articultura, Yacoff Sarkovas, levou três horas e teve acalorada reação da plateia.
No centro do duelo entre Ferreira e Pélico estava o bumba-meu-boi, manifestação de arte popular, tomada como símbolo das distintas opiniões sobre a função da Lei Rouanet no financiamento da cultura.
"Não podemos demonizar o incentivo fiscal porque o bumba-meu-boi está sem apoio", disse Pélico, sobre análise de Ferreira de que, nos moldes atuais, a Lei Rouanet concentra recursos em projetos do Sudeste e em artistas consagrados.
"[Citar dessa forma o] Bumba-meu-boi é uma discussão pejorativa. Vocês vão acabar atraindo a antipatia do Brasil para São Paulo", reagiu Ferreira. O ministro disse que "quem tem acesso [à lei] evidentemente não quer perdê-lo. Não quer ter critério público. Não quer critério nenhum" e seguiu: "Qualquer brasileiro tem direito de acesso à cultura. Todos os brasileiros, inclusive os do Piauí", no que foi aplaudido.
Mas a plateia aplaudiu e gritou "bravo!" também quando Sayad expressou sua visão, contrária à reforma da lei, e questionou o senso de oportunidade do MinC ao sugerir a mudança. O secretário paulista polarizou o debate com o ministro.
"No momento em que temos expectativa de redução brutal do lucro das empresas, vamos adicionar uma incerteza a um setor com uma infinidade de pessoas? Elas vão ter que, além de viver a crise, viver uma mudança não conhecida na Lei Rouanet? Discordamos do projeto de lei. Achamos que é dirigista. Discordamos sobre a oportunidade e discordamos da estratégia [do MinC] para a cultura", afirmou Sayad.
A aura de insegurança que toma parte do setor cultural em relação ao projeto não escapou ao ministro. "É o velho medo. Nada de medo. Diante do medo, devemos ter compaixão e solidariedade. Mas, diante da mistificação para gerar medo, não tenho nenhum respeito".
Para reduzir temores de que a reforma leve à redução de recursos para os produtores culturais e ao aumento do financiamento de projetos governamentais, o ministro se comprometeu a alterar o projeto:
"Vamos deixar claro que, através do Fundo [Nacional de Cultura] não haverá captação nem para o governo federal, nem os estaduais, nem os municipais. Vamos nos comprometer agora com isso".
Além da defesa da reforma da lei (por Ferreira) e da avaliação de que ela é desnecessária (por Sayad), uma terceira opinião despontou no debate, com Sarkovas: "Acho que as leis de incentivo deveriam ser extintas, porque elas têm problemas estruturais impossíveis de ser corrigidos com ajustes". Para ele, é preciso estimular o mercado e deixar ao Estado a tarefa de investir de acordo com uma política cultural pública.
A seguir, os principais trechos do debate, cuja íntegra está disponível no endereço www.folha.com.br/090931.
 
DIRIGISMO
Juca Ferreira - Na segunda etapa [do funcionamento da lei] tem dirigismo. Quem, em última instância, define o que é meritório para receber esses recursos são os departamentos de marketing das empresas. O Estado faz dirigismo. E o mercado faz dirigismo. Basta que a sociedade permita que o Estado faça dirigismo e que o mercado faça dirigismo.
João Sayad - Na medida em que existe grande propósito de aumentar recursos do Fundo Nacional de Cultura, em detrimento dos outros, e intenção legítima do ministério de ter mais poder de decisão dos recursos destinados à cultura, não há nada de errado, mas é efetivamente modificação discricionária.
Yacoff Sarkovas - Quem não teme dirigismo, censura, apadrinhamento? Estabelecer critério público não pode ser, a priori, chamado de dirigismo. Temos herança de um Estado corrupto, apadrinhador de interesses de pequenos grupos. É difícil aceitar a ideia de que recursos possam ser distribuídos com lisura na esfera pública. Ou a gente desiste da república ou enfrenta essa questão.
Paulo Pélico - Ao transferir para um decreto todos os poderes para montar as regras que iriam nortear esse processo [de seleção de projetos na Lei Rouanet], [o governo] cria grande brecha para o dirigismo cultural. Em mãos erradas, isso pode ser instrumento poderoso do alinhamento político e ideológico, na lógica do torrão de açúcar. Temos que nos precaver para que isso não venha a acontecer. Se tem que entrar no mérito [artístico dos projetos aspirantes ao patrocínio], de que jeito e para quem?

VERBA CONCENTRADA
Ferreira - Aponto como uma dificuldade que nem todos os produtores culturais, independentemente de onde estão localizados territorialmente têm acesso à renúncia fiscal em todo o território nacional. Temos concentração em certas regiões. Mas é falso chamar essa discussão para uma discussão puramente territorial. A desigualdade de acesso à cultura é enorme e boa parte da população está alijada.
Sayad - As informações que o senhor [Ferreira] apresenta sobre concentração [de recursos da Lei Rouanet] misturam muitas coisas e não são um diagnóstico correto. Já se confunde proponente [de projeto cultural] com artista. Não concordo com suas análises sobre a concentração. A arte paulista só é acessível aos paulistas? Se o proponente é a Natura ou o Itaú Cultural não quer dizer que ele vai financiar um artista só ou um artista da região Sudeste. Há confusão [de conceitos] sobre artista local e bem estadual. Se a Natura ou o Bradesco financiarem a Ivete Sangalo, onde o sr. vai colocar esse resultado? Se for um artista baiano, nós, paulistas, poderemos ouvi-lo? Esses índices são problemáticos. Não indicam a concentração que o sr. gostaria de apontar na lei.
Eduardo Saron - Faltam instrumentos que possam medir o impacto [da Lei Rouanet] na economia da cultura. Me parece fundamental que o ministério tenha um organismo nesse campo. Cada real empregado na cultura quanto gera na cadeia produtiva brasileira? Os dados são ainda muito pontuais e restritos a um universo. Temos que avançar nesse sentido, para ter ideias mais precisas sobre as injeções de verba na cultura. O desequilíbrio precisa ser equalizado não pela diminuição do mecenato.

A (NÃO) MUDANÇA
Sayad - A opinião pública, irritada com o governo, com os bancos, confunde os financiadores da cultura com os bancos ou as empresas associadas a ele. A lei de renúncia fiscal, do ponto de vista político pode ser facilmente criticada, como o caso do Cirque du Soleil [autorizado a captar R$ 9,4 milhões]. Esses erros, que ocorreram há muito tempo, não requerem mudança da lei, mas mudança do gerenciamento da lei, que está congestionada, como o sr. reconhece.
Ferreira - Assumam a responsabilidade sobre essa proposta, porque ela tem consequência desastrosa para a área cultural. Estamos vivendo uma dificuldade objetiva, que é a crise econômica que chegou ao Brasil. Desde outubro passado há retração de adesão à Lei Rouanet. As empresas recuaram. Essa proposta imobilista é nefasta. Dá aparente segurança, mas é o desastre da área cultural. É um erro, e eu estou denunciando aqui.

A FAVOR
A atriz Maria Alice Vergueiro, 74, concorda com o ministro Juca Ferreira: "A lei beneficia um círculo vicioso das empresas, que usam a verba para projetar a sua imagem. O resultado são produções raquíticas, que ficam apenas dois meses em cartaz, enquanto peças experimentais e grupos que fazem pesquisa não têm vez", disse. "E foi pejorativo o que se falou sobre o Bumba Meu Boi. Sinto-me uma Bumba Minha Vaca, pois não tenho oportunidade."

CONTRA
Para o ator e produtor Odilon Wagner, 54, há uma má gestão do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o ministro tem confrontado "os setores da cultura entre si, enquanto o confronto deveria ser com os ministérios da Fazenda e do Planejamento para obter orçamento maior". Já a atriz Beatriz Segall, 82, disse que há, sim, dirigismo nas propostas de mudança. "Como ele pode propor transparência se ele mesmo não aceita o diálogo e não aceita as críticas?"


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