São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2001

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TEATRO

Fauzi Arap e Sérgio Ferrara falam sobre a experiência em comum de dirigir a peça censurada de Plínio Marcos

"Abajur Lilás" abrange duas gerações

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

1967 foi o ano que não acabou na carreira de Fauzi Arap. Ator de grupos como Oficina e Arena, ele debutaria na direção com duas peças de Plínio Marcos (1935-1999), "Dois Perdidos numa Noite Suja", em parceria com Nelson Xavier, e "Navalha na Carne", produzida e estrelada por Tonia Carrero.
Arap, 63, era o tipo de encenador que Plínio gostava, um encenador "co-autor", que dialoga efetivamente com a obra. Pelo menos foi assim nas duas montagens ontológicas de 1967.
No início dos anos 80, "Abajur Lilás" marcaria o reencontro. Arap trouxe à luz a peça de Plínio censurada dez anos antes, quando estava pronta para ir ao palco, sob direção de Antônio Abujamra e com Lima Duarte no elenco.
A montagem, que alude às agruras do regime militar, foi recebida com certo incômodo no Brasil que resistia em falar de tortura e só tinha olhos para a incipiente abertura política.
Duas décadas depois, "Abajur Lilás" ressurge, agora sob as mãos de Sérgio Ferrara, 33, um dos representantes da nova geração paulista de encenadores que despontou em meados dos anos 90.
A Folha reuniu Arap e Ferrara para falar sobre a peça, o autor, as respectivas montagens e as gerações que os separam e os unem sob o mocó de quem vive à margem, ontem como hoje.

Folha - Fauzi, você viu os ensaios do espetáculo do Ferrara. Vocês podem distinguir os caminhos da encenação de cada um?
Fauzi Arap -
Como já havia feito duas peças do Plínio em um ano só, em 1967, eu montei "Abajur Lilás" do jeito que o Plínio é, realista. Mas foi uma montagem que eu definiria como morna, analisando agora, à distância. Não foi um espetáculo feliz. Fizemos uma montagem muito digna, muito limpa, mas muito respeitosa, não "pegou no breu", como diria o Plínio.
Os atores estavam bem, a Walderez de Barros, a Cláudia Melo..., mas havia uma resistência, não havia cumplicidade com a platéia, e o teatro político pede isso. Ficamos desarmados. Montamos com toda a referência histórica de um texto proibido durante dez anos.
Foi um espetáculo que não tive por onde entrar. Vendo os ensaios do Ferrara, talvez tenha me faltado a ousadia para cortar um pouco do texto, mas nem cogitei isso. Afinal, era um período de abertura das gavetas da censura.

Ferrara - Uma das coisas mais lindas em "Abajur", como em toda a dramaturgia do Plínio, é a força dos personagens, a gênese completa e visceral de cada um.
Para um diretor, o realismo é um grande desafio, não é fácil. É um trabalho permeado por detalhes, por sutilezas. O que mais me apaixona, aqui, além de trazer os personagens para o contexto universal, acima de tudo é brincar com as sutilezas e detalhes que o realismo proporciona, pequenos gestos e olhares que estão prestes a estourar um conflito. Procurei trabalhar com os atores a humanidade dos personagens, para que a platéia não torcesse nem para um nem para outro.
Desde "Barrela" (1999), eu procuro não trabalhar com o maniqueísmo. Ninguém é bom, ninguém é mau nas peças de Plínio. As pessoas são fruto de um sistema que, de certa forma, as levaram a atitudes terríveis. Elas precisam sobreviver. Sobrevivência é a palavra-chave. E, hoje, os marginais do Plínio são qualquer um, não importa a classe social.

Arap - Ainda com o Plínio vivo, quando o Ferrara contou que iria montar "Abajur", eu o desaconselhei, achava difícil extrair da peça a alegoria da ditadura.
Ferrara conseguiu um prodígio que talvez, para mim, seria difícil, por estar "viciado" com o contexto daquela época. Ele manteve a essência do texto, o conteúdo universal, e tirou aquilo que era mais datado, que pretendia denunciar a tortura por vias indiretas.

Ferrara - Mas, essa tortura, da qual você fala, continua na peça. É a tortura que fazemos contra nós mesmos constantemente, as pequenas mortes cotidianas em relação aos processos sociais, políticos, econômicos. Estamos adormecidos em relação à violência. Hoje, vigora o poder sobre o dinheiro, sobre a massa de manobra, as pessoas que têm de faturar. Quem tem paga, quem não tem vive muito mal.

Folha - A peça parece retratar com contundência o papel da mulher na sociedade, a partir da realidade das prostitutas. É possível entender assim?
Ferrara -
Eu fiz o espetáculo querendo que fosse lunar, feminino, porque a mulher tem esse dom de harmonizar as coisas. Ao mesmo tempo, não as vejo submissas. Sinto que, quando você está no limite da vida e a miséria é algo gritante, quando você precisa sobreviver, você tem de armar jogos.
Os códigos de ética na sociedade dita perfeita não valem mais para as pessoas que estão no submundo. Elas têm de reorganizar constantemente o pensamento para poder conseguir se manter com dignidade.
Sinto que essa submissão vem da capacidade de criar mais jogos para lidar com o Giro (cafetão), que é o poder explorador. Mas elas são corajosas. Esse tipo de pessoal sai de casa e não sabe se volta, assim como nós saímos hoje e também não sabemos.


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