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TEATRO
Fauzi Arap e Sérgio Ferrara falam sobre a experiência em comum de dirigir a peça censurada de Plínio Marcos
"Abajur Lilás" abrange duas gerações
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
1967 foi o ano que não acabou
na carreira de Fauzi Arap. Ator de
grupos como Oficina e Arena, ele
debutaria na direção com duas
peças de Plínio Marcos (1935-1999), "Dois Perdidos numa Noite Suja", em parceria com Nelson
Xavier, e "Navalha na Carne",
produzida e estrelada por Tonia
Carrero.
Arap, 63, era o tipo de encenador que Plínio gostava, um encenador "co-autor", que dialoga
efetivamente com a obra. Pelo
menos foi assim nas duas montagens ontológicas de 1967.
No início dos anos 80, "Abajur
Lilás" marcaria o reencontro.
Arap trouxe à luz a peça de Plínio
censurada dez anos antes, quando estava pronta para ir ao palco,
sob direção de Antônio Abujamra
e com Lima Duarte no elenco.
A montagem, que alude às
agruras do regime militar, foi recebida com certo incômodo no
Brasil que resistia em falar de tortura e só tinha olhos para a incipiente abertura política.
Duas décadas depois, "Abajur
Lilás" ressurge, agora sob as mãos
de Sérgio Ferrara, 33, um dos representantes da nova geração
paulista de encenadores que despontou em meados dos anos 90.
A Folha reuniu Arap e Ferrara
para falar sobre a peça, o autor, as
respectivas montagens e as gerações que os separam e os unem
sob o mocó de quem vive à margem, ontem como hoje.
Folha - Fauzi, você viu os ensaios
do espetáculo do Ferrara. Vocês
podem distinguir os caminhos da
encenação de cada um?
Fauzi Arap - Como já havia feito
duas peças do Plínio em um ano
só, em 1967, eu montei "Abajur
Lilás" do jeito que o Plínio é, realista. Mas foi uma montagem que
eu definiria como morna, analisando agora, à distância. Não foi
um espetáculo feliz. Fizemos uma
montagem muito digna, muito
limpa, mas muito respeitosa, não
"pegou no breu", como diria o
Plínio.
Os atores estavam bem, a Walderez de Barros, a Cláudia Melo...,
mas havia uma resistência, não
havia cumplicidade com a platéia,
e o teatro político pede isso. Ficamos desarmados. Montamos
com toda a referência histórica de
um texto proibido durante dez
anos.
Foi um espetáculo que não tive
por onde entrar. Vendo os ensaios do Ferrara, talvez tenha me
faltado a ousadia para cortar um
pouco do texto, mas nem cogitei
isso. Afinal, era um período de
abertura das gavetas da censura.
Ferrara - Uma das coisas mais
lindas em "Abajur", como em toda a dramaturgia do Plínio, é a
força dos personagens, a gênese
completa e visceral de cada um.
Para um diretor, o realismo é
um grande desafio, não é fácil. É
um trabalho permeado por detalhes, por sutilezas. O que mais me
apaixona, aqui, além de trazer os
personagens para o contexto universal, acima de tudo é brincar
com as sutilezas e detalhes que o
realismo proporciona, pequenos
gestos e olhares que estão prestes
a estourar um conflito. Procurei
trabalhar com os atores a humanidade dos personagens, para que
a platéia não torcesse nem para
um nem para outro.
Desde "Barrela" (1999), eu procuro não trabalhar com o maniqueísmo. Ninguém é bom, ninguém é mau nas peças de Plínio.
As pessoas são fruto de um sistema que, de certa forma, as levaram a atitudes terríveis. Elas precisam sobreviver. Sobrevivência é
a palavra-chave. E, hoje, os marginais do Plínio são qualquer um,
não importa a classe social.
Arap - Ainda com o Plínio vivo,
quando o Ferrara contou que iria
montar "Abajur", eu o desaconselhei, achava difícil extrair da peça
a alegoria da ditadura.
Ferrara conseguiu um prodígio
que talvez, para mim, seria difícil,
por estar "viciado" com o contexto daquela época. Ele manteve a
essência do texto, o conteúdo universal, e tirou aquilo que era mais
datado, que pretendia denunciar
a tortura por vias indiretas.
Ferrara - Mas, essa tortura, da
qual você fala, continua na peça. É
a tortura que fazemos contra nós
mesmos constantemente, as pequenas mortes cotidianas em relação aos processos sociais, políticos, econômicos. Estamos adormecidos em relação à violência.
Hoje, vigora o poder sobre o dinheiro, sobre a massa de manobra, as pessoas que têm de faturar.
Quem tem paga, quem não tem
vive muito mal.
Folha - A peça parece retratar
com contundência o papel da mulher na sociedade, a partir da realidade das prostitutas. É possível entender assim?
Ferrara - Eu fiz o espetáculo querendo que fosse lunar, feminino,
porque a mulher tem esse dom de
harmonizar as coisas. Ao mesmo
tempo, não as vejo submissas.
Sinto que, quando você está no limite da vida e a miséria é algo gritante, quando você precisa sobreviver, você tem de armar jogos.
Os códigos de ética na sociedade dita perfeita não valem mais
para as pessoas que estão no submundo. Elas têm de reorganizar
constantemente o pensamento
para poder conseguir se manter
com dignidade.
Sinto que essa submissão vem
da capacidade de criar mais jogos
para lidar com o Giro (cafetão),
que é o poder explorador. Mas
elas são corajosas. Esse tipo de
pessoal sai de casa e não sabe se
volta, assim como nós saímos hoje e também não sabemos.
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