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CARLOS HEITOR CONY
A vida sexual de homens e de cavalos
Dar-lhe-ei um nome de
fantasia, pois chegou a ser
razoavelmente conhecido em certos meios. Chamava-se Enéas, como o próprio, só que não era candidato a nada, não usava barba
e, ao que me consta, não fazia do
seu nome um programa político e
ideológico. Era Enéas, como o 007
era Bond, James Bond.
Tinha mulher, um casal de filhos, bom emprego, morava bem,
viajava todos os anos para Nova
York ou Londres. Achava que somente nessas duas cidades havia
teatro. Nas outras, inclusive em
Paris, havia mafuás.
Por volta dos 40 ou 45 anos, não
estava milionário, mas rico. Pois
esse homem me telefonou e me
pediu que largasse tudo e fosse me
encontrar com ele. Era urgente e
dramático que não fizesse perguntas: quando estivéssemos juntos, ele contaria o que se passava
de extraordinário.
Estranhei o endereço que deu.
Um motel lá para os lados da avenida Niemeyer, um cinco estrelas
de alta rotatividade. Deveria arranjar uma companhia e alugar o
apartamento 216, ao lado do dele,
que era o 214.
Naquela ocasião, eu estava com
a mão na massa, e não foi difícil.
Encontrei uma companhia que
topou ir comigo ao motel. Expliquei a situação por alto, ia em
missão de misericórdia, ajudar
um amigo numa emergência.
Que ela não fizesse perguntas, levasse um livro para ler a fim de
passar o tempo.
Uma hora depois do telefonema, eu estacionava o carro na pequena garagem acoplada ao
quarto 216. Subimos uma escadinha e entramos na espaçosa suíte,
coberta de espelhos. A cabeceira
da cama parecia a cabine de um
Boeing 747, cheia de botões, chaves, monitores que comandavam
luzes, sons, vídeos, ar refrigerado,
perfumes afrodisíacos, massagens, sauna, piscina quente e fria,
o diabo.
Coloquei a amiga à vontade,
que se servisse do bar e do livro
que trouxera (por sinal, um livro
do James Bond, ""Os Diamantes
São Eternos"). O telefone tocou.
Era o Enéas, que, no quarto ao lado, ouvira que eu chegara. Com
voz soprada, pediu que eu descesse até onde estacionara o meu
carro e entrasse por uma portinha
que ligava a garagem do 216 ao
214. Ele estaria me esperando.
Minha amiga já havia aberto
uma daquelas garrafinhas de uísque em miniatura e ofereceu-me
um trago. Achei conveniente tomar não um trago, mas duas daquelas garrafinhas. Foi aí que eu
percebi que estava nervoso, alguma coisa me alertando para a
besteira que ia fazer.
Encontrei a porta do 214 aberta.
Numa suíte rigorosamente igual
à minha. Enéas estava sozinho,
vestido com uma malha azul e
branca de um fabricante esportivo, tênis incrementado. Sentado
numa poltrona, olhava estupidamente para a cama, a cama vazia, mas revolta em seus lençóis e
travesseiros, como se ali um fauno
poderoso houvesse possuído 500
virgens de uma só vez.
Não foi isso que me preocupou.
Foi a cara neutra com que ele me
recebeu, como se não soubesse o
que eu estava fazendo ali. Por um
instante imaginei o pior: a mulher que estivera com ele se atirara pela janela ou teria tido um
ataque fulminante no banheiro
-e Enéas precisaria de ajuda para sair da embrulhada.
Era mais ou menos isso, mas em
outra dimensão. Perguntei a ele o
que estava havendo, o problema
para o qual me solicitara. Enéas
nem olhou para mim. Olhou para
debaixo da cama, onde um sapato de mulher, salto Luis 15, aparecia pela metade. O sapato tinha
um pé dentro, envolto numa meia
de boa qualidade, cor-de-carne
como costumam ser as meias-calças das mulheres.
Senti vontade de vomitar. Onde
me metera? Fiquei afásico, sem
saber se continuava olhando para
aquele pé ou para o meu amigo.
Olhava para os dois, sem coragem
de perguntar e sem vontade de saber mais.
Enéas levantou-se, foi até o leito, puxou o pé que saía de debaixo da cama. O pé veio com a perna de uma mulher, a meia-calça
cor-de-carne. Apenas não era
uma perna de carne. Era a perna
de um manequim, provavelmente de fibra de vidro.
E, depois da perna, vieram outros pedaços daquele corpo, vestido com uma minissaia vermelha,
curtíssima. A cabeça foi a última
que veio para fora, descolada do
tronco. Tinha os olhos azuis e
imensas pestanas de plástico.
Enéas não sabia o que fazer
com tudo aquilo. Entrara no motel com o manequim montado e
vestido, não podia sair com ele
aos pedaços, esquartejado, com as
roupas em frangalhos. Além da
vergonha, podia dar bode para o
lado dele. Também seria difícil
sem ele. Porteiros de motel fazem
questão de que os usuários não
deixem lá dentro a parceira, viva
ou morta, não importa.
Ajudei-o a reconstituir o manequim, da melhor maneira possível. Levamos o boneco para o carro. Com alguma dificuldade o arrumamos no banco da frente, ao
lado do volante. Enéas poderia
sair sem despertar suspeitas na
portaria e na guarita de segurança.
Prestado o favor, voltei para o
216. A minha companheira estava assistindo a um vídeo daqueles, incrementados, em que havia
duas suecas ninfômanas e um cavalo puro-sangue. Quando viu a
minha cara, ela perdeu a vontade
e viemos embora.
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