São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

A vida sexual de homens e de cavalos

Dar-lhe-ei um nome de fantasia, pois chegou a ser razoavelmente conhecido em certos meios. Chamava-se Enéas, como o próprio, só que não era candidato a nada, não usava barba e, ao que me consta, não fazia do seu nome um programa político e ideológico. Era Enéas, como o 007 era Bond, James Bond.
Tinha mulher, um casal de filhos, bom emprego, morava bem, viajava todos os anos para Nova York ou Londres. Achava que somente nessas duas cidades havia teatro. Nas outras, inclusive em Paris, havia mafuás.
Por volta dos 40 ou 45 anos, não estava milionário, mas rico. Pois esse homem me telefonou e me pediu que largasse tudo e fosse me encontrar com ele. Era urgente e dramático que não fizesse perguntas: quando estivéssemos juntos, ele contaria o que se passava de extraordinário.
Estranhei o endereço que deu. Um motel lá para os lados da avenida Niemeyer, um cinco estrelas de alta rotatividade. Deveria arranjar uma companhia e alugar o apartamento 216, ao lado do dele, que era o 214.
Naquela ocasião, eu estava com a mão na massa, e não foi difícil. Encontrei uma companhia que topou ir comigo ao motel. Expliquei a situação por alto, ia em missão de misericórdia, ajudar um amigo numa emergência. Que ela não fizesse perguntas, levasse um livro para ler a fim de passar o tempo.
Uma hora depois do telefonema, eu estacionava o carro na pequena garagem acoplada ao quarto 216. Subimos uma escadinha e entramos na espaçosa suíte, coberta de espelhos. A cabeceira da cama parecia a cabine de um Boeing 747, cheia de botões, chaves, monitores que comandavam luzes, sons, vídeos, ar refrigerado, perfumes afrodisíacos, massagens, sauna, piscina quente e fria, o diabo.
Coloquei a amiga à vontade, que se servisse do bar e do livro que trouxera (por sinal, um livro do James Bond, ""Os Diamantes São Eternos"). O telefone tocou. Era o Enéas, que, no quarto ao lado, ouvira que eu chegara. Com voz soprada, pediu que eu descesse até onde estacionara o meu carro e entrasse por uma portinha que ligava a garagem do 216 ao 214. Ele estaria me esperando.
Minha amiga já havia aberto uma daquelas garrafinhas de uísque em miniatura e ofereceu-me um trago. Achei conveniente tomar não um trago, mas duas daquelas garrafinhas. Foi aí que eu percebi que estava nervoso, alguma coisa me alertando para a besteira que ia fazer.
Encontrei a porta do 214 aberta. Numa suíte rigorosamente igual à minha. Enéas estava sozinho, vestido com uma malha azul e branca de um fabricante esportivo, tênis incrementado. Sentado numa poltrona, olhava estupidamente para a cama, a cama vazia, mas revolta em seus lençóis e travesseiros, como se ali um fauno poderoso houvesse possuído 500 virgens de uma só vez.
Não foi isso que me preocupou. Foi a cara neutra com que ele me recebeu, como se não soubesse o que eu estava fazendo ali. Por um instante imaginei o pior: a mulher que estivera com ele se atirara pela janela ou teria tido um ataque fulminante no banheiro -e Enéas precisaria de ajuda para sair da embrulhada.
Era mais ou menos isso, mas em outra dimensão. Perguntei a ele o que estava havendo, o problema para o qual me solicitara. Enéas nem olhou para mim. Olhou para debaixo da cama, onde um sapato de mulher, salto Luis 15, aparecia pela metade. O sapato tinha um pé dentro, envolto numa meia de boa qualidade, cor-de-carne como costumam ser as meias-calças das mulheres.
Senti vontade de vomitar. Onde me metera? Fiquei afásico, sem saber se continuava olhando para aquele pé ou para o meu amigo. Olhava para os dois, sem coragem de perguntar e sem vontade de saber mais.
Enéas levantou-se, foi até o leito, puxou o pé que saía de debaixo da cama. O pé veio com a perna de uma mulher, a meia-calça cor-de-carne. Apenas não era uma perna de carne. Era a perna de um manequim, provavelmente de fibra de vidro.
E, depois da perna, vieram outros pedaços daquele corpo, vestido com uma minissaia vermelha, curtíssima. A cabeça foi a última que veio para fora, descolada do tronco. Tinha os olhos azuis e imensas pestanas de plástico.
Enéas não sabia o que fazer com tudo aquilo. Entrara no motel com o manequim montado e vestido, não podia sair com ele aos pedaços, esquartejado, com as roupas em frangalhos. Além da vergonha, podia dar bode para o lado dele. Também seria difícil sem ele. Porteiros de motel fazem questão de que os usuários não deixem lá dentro a parceira, viva ou morta, não importa.
Ajudei-o a reconstituir o manequim, da melhor maneira possível. Levamos o boneco para o carro. Com alguma dificuldade o arrumamos no banco da frente, ao lado do volante. Enéas poderia sair sem despertar suspeitas na portaria e na guarita de segurança.
Prestado o favor, voltei para o 216. A minha companheira estava assistindo a um vídeo daqueles, incrementados, em que havia duas suecas ninfômanas e um cavalo puro-sangue. Quando viu a minha cara, ela perdeu a vontade e viemos embora.



Texto Anterior: Fotografia: Competência de "Fotofagia" se perde em espaço de galeria
Próximo Texto: Cinema/Estréias - "A Essência da Paixão": Filme expõe jogos de sociedade "sinistra"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.