São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Longa aposta que passado pode reviver na tela

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando ainda fazia um cinema capaz de deixar marcas no seu tempo, Wim Wenders se declarou incapaz de filmar uma história em que não houvesse carros, garagens e máquinas que funcionassem com moedas, em que a realidade tivesse de ser excluída, como nos filmes de época. Porque, para ele, todo filme tinha de ser também um documentário do seu tempo.
"A Essência da Paixão" ("The House of Mirth", baseado no romance homônimo de Edith Wharton), do inglês Terence Davies, não sofre desses escrúpulos. Ao contrário, aposta no ponto de vista abertamente ilusionista de que o passado pode ser revivido na tela, para o deleite escapista do espectador, por meio de uma idealização, de maneirismos e afetações.
O passado para Davies (diretor reverenciado pela melancolia sensível mas afetada de seus filmes "Vozes Distantes" ou "O Fim de um Longo Dia") é estético. Ele é a própria possibilidade do filme. A caracterização de época, embora desta vez seguindo a trama linear da narrativa, continua tão estilizada quanto a memória fragmentada de seus filmes anteriores.
Davies retrata o início do século 20 em Nova York como se fosse uma tela de John Singer Sargent, célebre pintor da belle époque americana, amigo de Henry James e admirador de Manet e dos impressionistas, embora adepto da beleza acadêmica, em quem o cineasta declarou ter se inspirado para criar a fotografia de "A Essência da Paixão".
O academicismo competente de Davies se revela aqui sem o verniz experimental de seus outros filmes. Sua sorte é a história folhetinesca que tem nas mãos. O romance de Wharton conta como uma mulher (interpretada por Gillian Anderson, a agente Scully da série "Arquivo X"), que tenta impor sua integridade moral e de sentimentos, sua independência e sua emancipação à alta sociedade nova-iorquina do início do século e acaba massacrada pela hipocrisia generalizada: tem de enfrentar, em vão, o poder dos homens, a pressão do dinheiro e a traição das outras mulheres, que aprenderam a cultivar a falsidade como forma de sobrevivência.
A própria Edith Wharton (1862-1937), autora do também célebre "A Era da Inocência" (filmado por Scorsese em "A Época da Inocência"), aconselhada pelo médico a escrever romances para se distrair de seu casamento infeliz com um banqueiro de Boston, de quem se divorciou em 1912, preferiu mudar-se definitivamente para a França a ter de enfrentar o moralismo da alta burguesia americana de que fazia parte.
"The House of Mirth" (A Casa da Alegria, na tradução literal, que preserva a ironia) fala de um mundo baseado no dinheiro. Na sua indignação feminista, que o caso narrado pelo romance ilustra e justifica, Wharton fez um retrato da América bem menos heróico do que se gostaria de supor à época. Pois aqui, onde Deus foi posto na nota de dinheiro, não é só a posição social que muda conforme as posses, mas os sentimentos, a reputação, a moral e a própria verdade.



A Essência da Paixão
The House of Mirth
   
Produção: Reino Unido, 2000
Direção: Terence Davies
Com: Gillian Anderson, Eric Stoltz, Dan Aykroyd
Quando: a partir de hoje no Top Cine e no Belas Artes




Texto Anterior: Cinema/Estréias - "A Essência da Paixão": Filme expõe jogos de sociedade "sinistra"
Próximo Texto: Backstreet Boys reúne 50 mil no Rio, diz PM
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.