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CRÍTICA
Longa aposta que passado pode reviver na tela
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando ainda fazia um cinema capaz de deixar marcas no seu tempo, Wim Wenders
se declarou incapaz de filmar uma
história em que não houvesse carros, garagens e máquinas que funcionassem com moedas, em que a
realidade tivesse de ser excluída,
como nos filmes de época. Porque, para ele, todo filme tinha de
ser também um documentário do
seu tempo.
"A Essência da Paixão" ("The
House of Mirth", baseado no romance homônimo de Edith
Wharton), do inglês Terence Davies, não sofre desses escrúpulos.
Ao contrário, aposta no ponto de
vista abertamente ilusionista de
que o passado pode ser revivido
na tela, para o deleite escapista do
espectador, por meio de uma
idealização, de maneirismos e afetações.
O passado para Davies (diretor
reverenciado pela melancolia sensível mas afetada de seus filmes
"Vozes Distantes" ou "O Fim de
um Longo Dia") é estético. Ele é a
própria possibilidade do filme. A
caracterização de época, embora
desta vez seguindo a trama linear
da narrativa, continua tão estilizada quanto a memória fragmentada de seus filmes anteriores.
Davies retrata o início do século
20 em Nova York como se fosse
uma tela de John Singer Sargent,
célebre pintor da belle époque
americana, amigo de Henry James e admirador de Manet e dos
impressionistas, embora adepto
da beleza acadêmica, em quem o
cineasta declarou ter se inspirado
para criar a fotografia de "A Essência da Paixão".
O academicismo competente de
Davies se revela aqui sem o verniz
experimental de seus outros filmes. Sua sorte é a história folhetinesca que tem nas mãos. O romance de Wharton conta como
uma mulher (interpretada por Gillian Anderson, a agente Scully da
série "Arquivo X"), que tenta impor sua integridade moral e de
sentimentos, sua independência e
sua emancipação à alta sociedade
nova-iorquina do início do século
e acaba massacrada pela hipocrisia generalizada: tem de enfrentar, em vão, o poder dos homens,
a pressão do dinheiro e a traição
das outras mulheres, que aprenderam a cultivar a falsidade como
forma de sobrevivência.
A própria Edith Wharton (1862-1937), autora do também célebre
"A Era da Inocência" (filmado
por Scorsese em "A Época da Inocência"), aconselhada pelo médico a escrever romances para se
distrair de seu casamento infeliz
com um banqueiro de Boston, de
quem se divorciou em 1912, preferiu mudar-se definitivamente para a França a ter de enfrentar o
moralismo da alta burguesia
americana de que fazia parte.
"The House of Mirth" (A Casa
da Alegria, na tradução literal, que
preserva a ironia) fala de um
mundo baseado no dinheiro. Na
sua indignação feminista, que o
caso narrado pelo romance ilustra e justifica, Wharton fez um retrato da América bem menos heróico do que se gostaria de supor à
época. Pois aqui, onde Deus foi
posto na nota de dinheiro, não é
só a posição social que muda conforme as posses, mas os sentimentos, a reputação, a moral e a
própria verdade.
A Essência da Paixão
The House of Mirth
Produção: Reino Unido, 2000
Direção: Terence Davies
Com: Gillian Anderson, Eric Stoltz, Dan
Aykroyd
Quando: a partir de hoje no Top Cine e
no Belas Artes
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