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CONTARDO CALLIGARIS
Palavras vazias
Aos 12 anos, fiquei um mês
de cama. Não me lembro se
foi por uma gripe ou algo mais sério, mas sei que passava meu tempo lendo. Alguém me oferecera
um tratado sobre o Diabo: era
uma longa compilação, desde a
queda de Lúcifer até os cultos satânicos modernos. O livro terminava com um apêndice que explicava as diferentes maneiras de
convocar o demônio.
Era crucial evitar que Satanás,
uma vez convocado, se apoderasse de minha alma sem oferecer
uma contrapartida valiosa -tipo: "Dano-me para a eternidade,
mas você fará meus deveres de casa até o fim de meus estudos".
Ora, o livro propunha rituais minuciosos (pentagramas, círculos
de sangue etc.) que eram impossíveis de realizar no meu quarto.
Salvo um: uma fórmula de duas
páginas, cuja simples leitura em
voz alta garantiria que o capeta
se apresentasse manso e bem-disposto. Problema: a fórmula só
funcionaria se ela fosse lida sem
erros; uma letra fora do lugar bastaria para que o diabo aparecesse
na minha frente indignado e poderosíssimo. Detalhe: o texto era
composto por uma série de nomes
diabólicos com uma concentração de consonantes de dar inveja
a uma lista telefônica polonesa, e
o risco de errar na pronúncia era
considerável. Na solidão de meu
quarto, comecei a ler em voz alta.
Dezenas de vezes, amarelei antes
do fim. Mas, logo, recomeçava.
Por quê?
Não acho que estivesse a fim de
encontrar o capeta, tampouco tinha um pacto importante para
lhe propor, mas não resistia à sedução de palavras que, segundo o
livro que estava na minha mão,
teriam o poder de evocar o próprio espírito do mal.
Pois bem, o best-seller mundial
do último ano é "O Código Da
Vinci", de Dan Brown. No seu
rasto, vêm "O Enigma do Quatro", de Caldwell e Thomason, e
"O Clube Dante", de Matthew
Pearl. Isso, sem contar "O Historiador", de Elizabeth Kostova, ou
"O Terceiro Segredo", de Steve
Berry.
Na minha (prazerosa) leitura,
são romances que pertencem ao
filão de "O Nome da Rosa", de
Umberto Eco (1980).
Fora o sucesso de público, o que
a história de Maria Madalena
tem a ver com os vampiros ou
com o terceiro segredo de Fátima?
Por que juntar esses romances
num mesmo "filão"?
Certamente, eles satisfazem ao
gosto "new age" pelas coisas arcanas e "espirituais", ou seja, encorajam-nos a acreditar que a vida
seja mais misteriosa do que ela é.
Desse ponto de vista, eles não são
diferentes das façanhas de Harry
Potter e da magia de Paulo Coelho.
Mas não é só isso: todos os romances que mencionei contam
histórias em que as palavras têm
um valor muito especial. Morre-se por um livro inédito de Aristóteles, mata-se por um evangelho
apócrifo; uma frase pronunciada
em voz alta comanda a aparição
do vampiro; quase sempre, o segredo está em alguns textos que é
preciso encontrar, ler, meditar e
interpretar perfeitamente -textos em que cada letra conta.
É bem possível que o motivo do
sucesso atual desses best-sellers
seja, então, o esvaziamento dos
discursos que enchem o dia-a-dia
de nossos ouvidos: a nostalgia por
uma palavra magicamente plena
e eficiente bate forte num momento (ou numa época) em que
as palavras que nos interpelam
parecem curiosamente fúteis.
Em sua maioria, as falas públicas (das quais somos os destinatários) não apostam na nossa capacidade de entender, memorizar,
pensar e julgar; sobretudo, elas
supõem de antemão sua própria
irrelevância: desprezam sua capacidade expressiva, seu texto e
sua mensagem. O que é despejado
em nossos ouvidos cultiva apenas
aquela função da linguagem que
Jakobson chamava "função apelativa", ou seja, a função pela
qual quem fala quer nos induzir a
agir segundo seus desejos.
Criminosos convictos nos falam
de ética pública e pedem cumplicidade, políticos desqualificados
nos prometem futuros radiosos e
pedem votos, publicitários mentirosos nos garantem a felicidade a
preço de banana e pedem compras. O texto não tem importância nenhuma, só importa que ele
nos convoque.
Nos primórdios da psicologia
comportamental, Pavlov condicionou um cachorro para que salivasse a cada vez que ele escutava uma campainha. Pois bem, espera-se que sejamos como o cachorro de Pavlov no meio de um
concerto de campainhas, salivando sem parar e sem pensar.
Em suma, estamos na posição
do capeta de minha infância, mas
recebendo fórmulas incoerentes.
O capeta, em princípio, ficaria furioso. E nós?
Bom, aparentemente, em compensação, somos seduzidos por
histórias em que as palavras contam, pois escondem (e, eventualmente, revelam) um sentido, histórias em que a ação é fruto de
uma atenta meditação do que foi
dito e está escrito.
Aparte: estreou na semana passada, no Sesc Vila Mariana, em
São Paulo, a nova peça de Gerald
Thomas, em homenagem a Samuel Beckett, "Asfaltaram a Terra". Na verdade, são quatro peças
breves (apresentadas duas de cada vez, em dias alternados), com
Serginho Groisman, Luiz Damasceno, Fabiana Gugli e o próprio
Thomas como protagonistas.
Ninguém melhor que Gerald
Thomas consegue transformar
em espetáculo a extraordinária
cacofonia que assombra os ouvidos modernos.
@ - ccalligari@uol.com.br
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