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CONTARDO CALLIGARIS
A festa da final, entre São Paulo e Nova York
Há anos, a cada mês, viajo
entre São Paulo e Nova
York. Volta e meia, antes de enfiar a cara num livro, converso
com meus vizinhos de assento,
que, naturalmente, me perguntam se estou indo ou voltando.
Querem saber onde moro.
Inevitavelmente, a conversa encaminha-se para uma comparação, com a lista dos encantos e dos
defeitos respectivos de São Paulo e
de Nova York. Mas, no discurso
da maioria de meus companheiros de viagem, não reconheço
nem São Paulo, nem Nova York.
A razão que me prende às duas cidades não está em nenhuma das
listas propostas.
Na verdade, gosto de São Paulo
e de Nova York por algo que elas
têm em comum, e não se trata das
coisas desejáveis que nelas é possível encontrar e, eventualmente,
conseguir. De que se trata, então?
No domingo passado, de manhã bem cedo, nas ruas desertas e
já quentes de Manhattan, só circulavam camisas amarelas: brasileiros a caminho do lugar onde
assistiriam à final. Alguns procuravam os restaurantes que
abriam às 6h, oferecendo telão e
café completo (até US$ 50, um
roubo). Outros iam para a casa de
amigos a fim de torcer em boa
companhia.
Depois das 10h, na seção da rua
46 conhecida como "Little Brazil", começou a festa: batucada,
crianças, apitos, pulos e trenzinhos de Carnaval. A maioria era
de imigrantes: brasileiros de todos
os Estados, de todas as idades e de
todas as camadas da classe média, que vieram tentar fortuna,
na esperança de que fazer a América do Norte fosse mais fácil do
que fazer a América do Sul.
A festa era parecida com qualquer festa de uma das diferentes
comunidades que compõem o
mosaico americano -pelo clima
e pelas decorações, poderia ter sido um baile na "Little Italy" de
Boston. A alegria era ora contida
e quase melancólica, ora exasperada e quase raivosa -em ambos
os casos, misteriosamente comovedora.
Os brasileiros, vestindo as cores
nacionais, embrulhados em bandeiras de vário feitio, dançavam
por nostalgia da terra deixada:
celebravam, assim, o vilarejo, o
calor das famílias extensas, a clara definição das tarefas da vida e
do que se precisa para cumpri-las,
o conforto de uma comunidade
em que os lugares são poucos,
mas, em compensação, mais bem
definidos. Eles também dançavam embaixo das bandeiras
americanas que, nos adornos da
rua, se alternavam com as brasileiras. Aliás, alguns agitavam as
duas bandeiras, uma em cada
mão. O imigrante é um protótipo
da subjetividade moderna: nele a
nostalgia convive e luta com o sonho de ir embora, de inventar
uma vida nova, de surpreender
aos outros e a si mesmo.
As grandes cidades são os lugares que mais seduzem o imigrante
-seja ele brasileiro em Nova
York ou nordestino em São Paulo. É preciso muita gente em pouco espaço para inventar uma sociedade em que o lugar de cada
um não dependa mais de origem
e tradição, mas da consideração
dos outros. Essas cidades assumem a aparência de gigantescas
vitrinas: elas prezam e expõem
uma infinidade de objetos, prometendo que os cidadãos serão
reconhecidos e valorizados pelas
posses que conquistarão. Em geral, são objetos que faziam falta
no lugar natal e que alimentam
os devaneios dos que lá ficaram.
Paradoxo: na fantasia do imigrante, ser feliz significa poder
voltar (se possível, rico às mãos-cheias) para onde ele não conseguiu ficar. A salvaguarda contra
a nostalgia é a suposição de que
os outros, no vilarejo, sintam inveja dele. O imigrante, mesmo
fracassando no novo lugar, é consolado pela idéia de que, em sua
comunidade de origem, ele se tornou "alguém" in absentia, graças
à inveja dos que permaneceram.
Hoje, a seleção é campeã: como
escreveu José Roberto Torero na
Folha de segunda, o Jardim Irene
é a capital do mundo. Para o imigrante, é, ao mesmo tempo, uma
jubilação e um drama. Por isso,
talvez, a alegria da festa parecesse
contida ou exasperada. O orgulho
do país nativo compromete a humildade que é necessária para integrar-se e, quando o vilarejo
triunfa, o imigrante pode duvidar
da inveja de quem ficou na terra:
vacilam as forças que permitem
continuar a aventura.
O orgulho coloca o imigrante
numa terra de ninguém: impede
que ele se integre, quando já é tarde demais para voltar. Parêntese:
é essa derrelição que subleva os
imigrantes norte-africanos na
Europa. Os orgulhosos sonhos
pan-arabistas impediram que eles
se moldassem à sociedade para
onde viajaram. E, aos olhos de
quem permaneceu em casa, eles
são mais desertores do que objetos
de inveja.
O encanto de Nova York e de
São Paulo não está nas vitrinas e
nos objetos enumerados por meus
companheiros de viagem. Não está nas lojas de charutos, nas limusines e nos restaurantes de luxo.
Ele está nos povos imigrantes. Sinto-me em casa, em Nova York como em São Paulo, pelos milhões
de esperançosos que vieram buscar liberdades e que ficam, como
baleias encalhadas na praia, ofegando entre o sonho e a nostalgia.
São eles que conferem aos ares
paulistano e nova-iorquino a
densidade, inconfundível e extraordinária, do desejo humano.
ccalligari@uol.com.br
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