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BERNARDO CARVALHO
Robespierre e eu
De fato, já tive vontade de matar quem não gosta dos livros que aprecio. Várias vezes
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NUM TEXTO publicado há um
mês na revista "The New
Yorker", o crítico Adam
Gopnik escreveu a propósito de uma
biografia de Robespierre: "[Ele] representa a ascensão do nerd assassino de massa -um homem que, tendo lido um livro, resolve matar todos
os que não o apreciam tanto quanto
ele. (...) O intelectual pequeno e fastidioso, o homem com uma idéia, o
protótipo de Lênin ouvindo Beethoven enquanto a Tcheka inicia seus
expurgos. Em tempos normais, esse
tipo de homem vira professor universitário, resenhista de livros ou
bloguista. São necessárias circunstâncias históricas especiais para que
se torne assassino".
Exercendo com alguma freqüência uma das três funções que o modelo de homem identificado com
Robespierre assume em tempos de
paz, me sinto à vontade para concordar com a definição. De fato, já tive
vontade de matar quem não gosta
dos livros que aprecio. Várias vezes.
Uma amiga, professora universitária, encorajada pela minha confissão, não hesitou em se abrir, como
quem se livra do peso de anos de silêncio: "O pior é quando eles [os alunos] adoram um livro que você
odeia".
Um desses alunos uma vez me
perguntou quais eram os meus autores preferidos. A minha resposta
só produziu desdém. O aluno reiterou a pergunta: "Você não consegue
citar nada além do cânone?".
O "cânone", para ele, reproduzindo a visão histórica e sociologicamente relativista do departamento
de letras onde estudava, era a literatura moderna, criada sob a égide da
burguesia florescente e imposta como modelo ao resto do mundo, durante o auge do capitalismo industrial e imperialista. Gente como
Conrad, Proust, Joyce, Kafka, Beckett etc. Como alternativa, o aluno
propunha "outras vozes" (das mulheres, dos negros, dos gays e dos excluídos sociais, em geral de países
periféricos massacrados pelo imperialismo e pelo capitalismo). Propunha as vozes dos autores no lugar
das obras, que lhe eram indiferentes
(ou, pelo menos, secundárias), uma
vez que estas, ao contrário daquelas,
se beneficiavam dos critérios subjetivos impostos pela hegemonia do
poder.
Em outras palavras, já que era impossível analisar objetivamente as
obras, sem as ferramentas da história e da sociologia, o que contava
eram as "vozes". Eram o único parâmetro objetivo para uma compreensão engajada da literatura. Sua visão,
imbuída em aplicar às artes os mesmos princípios de justiça social e de
democracia que deveriam reger toda sociedade digna, reduzia a ficção
a testemunho e a literatura a expressão e representação (de classe ou extração social, gênero, raça). O aluno
era um filho típico dos estudos culturais e do multiculturalismo.
O que ele não queria ver é que o
seu raciocínio relativista, por mais
objetivos que fossem os seus critérios, não deixava de reproduzir a sanha de Robespierre. Não só ele continuava com vontade de matar
quem não gostasse dos livros que ele
apreciava, mas agora estava munido
de argumentos objetivos para tanto.
Não estava me dizendo somente
que o meu gosto ("burguês e reacionário", segundo ele) era resultado de
uma formação cultural entre outras.
Estava me anunciando o fim da discussão, com um argumento absoluto e irrefutável, ao transferir o foco
de uma subjetividade (a obra) para
uma objetividade sociológica (a voz
que se exprime por meio da obra e
por ela é representada). O aluno endossava, assim, uma compreensão
bastante comum da literatura, segundo a qual um romance deve ser
lido e apreciado "pelo que ele representa" e não "pelo que ele é", pelo
que ele diz e não por inaugurar um
outro modo de dizer e de pensar,
ampliando assim a própria compreensão da literatura.
O que desperta o espírito de Robespierre em mim é menos o fato de
haver gente no mundo que não gosta
do que eu gosto do que o fato de dizerem que não percebem a diferença
entre o que eu gosto e o que eu não
gosto, por conta de uma ordem extraliterária, moral ou política.
Tanto eu como o aluno, entretanto, teremos que aprender a lidar e
conviver com subjetividades conflitantes, se quisermos que a literatura
sobreviva do modo libertário como
foi concebida pela modernidade no
Ocidente. Uma literatura que rompe
com o que os seus contemporâneos
(o aluno e eu) esperam e exigem dela
e se recusa a seguir os caminhos que
lhe indicam a crítica, a moral ou o
mercado. Pois está determinada a ir
além da mera representação social
ou do documento de identidade, até
onde eu e o aluno (e os nossos discursos) seremos obrigados a nos
reinventar junto com ela.
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