São Paulo, terça-feira, 04 de julho de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Robespierre e eu


De fato, já tive vontade de matar quem não gosta dos livros que aprecio. Várias vezes

NUM TEXTO publicado há um mês na revista "The New Yorker", o crítico Adam Gopnik escreveu a propósito de uma biografia de Robespierre: "[Ele] representa a ascensão do nerd assassino de massa -um homem que, tendo lido um livro, resolve matar todos os que não o apreciam tanto quanto ele. (...) O intelectual pequeno e fastidioso, o homem com uma idéia, o protótipo de Lênin ouvindo Beethoven enquanto a Tcheka inicia seus expurgos. Em tempos normais, esse tipo de homem vira professor universitário, resenhista de livros ou bloguista. São necessárias circunstâncias históricas especiais para que se torne assassino".
Exercendo com alguma freqüência uma das três funções que o modelo de homem identificado com Robespierre assume em tempos de paz, me sinto à vontade para concordar com a definição. De fato, já tive vontade de matar quem não gosta dos livros que aprecio. Várias vezes.
Uma amiga, professora universitária, encorajada pela minha confissão, não hesitou em se abrir, como quem se livra do peso de anos de silêncio: "O pior é quando eles [os alunos] adoram um livro que você odeia".
Um desses alunos uma vez me perguntou quais eram os meus autores preferidos. A minha resposta só produziu desdém. O aluno reiterou a pergunta: "Você não consegue citar nada além do cânone?".
O "cânone", para ele, reproduzindo a visão histórica e sociologicamente relativista do departamento de letras onde estudava, era a literatura moderna, criada sob a égide da burguesia florescente e imposta como modelo ao resto do mundo, durante o auge do capitalismo industrial e imperialista. Gente como Conrad, Proust, Joyce, Kafka, Beckett etc. Como alternativa, o aluno propunha "outras vozes" (das mulheres, dos negros, dos gays e dos excluídos sociais, em geral de países periféricos massacrados pelo imperialismo e pelo capitalismo). Propunha as vozes dos autores no lugar das obras, que lhe eram indiferentes (ou, pelo menos, secundárias), uma vez que estas, ao contrário daquelas, se beneficiavam dos critérios subjetivos impostos pela hegemonia do poder.
Em outras palavras, já que era impossível analisar objetivamente as obras, sem as ferramentas da história e da sociologia, o que contava eram as "vozes". Eram o único parâmetro objetivo para uma compreensão engajada da literatura. Sua visão, imbuída em aplicar às artes os mesmos princípios de justiça social e de democracia que deveriam reger toda sociedade digna, reduzia a ficção a testemunho e a literatura a expressão e representação (de classe ou extração social, gênero, raça). O aluno era um filho típico dos estudos culturais e do multiculturalismo.
O que ele não queria ver é que o seu raciocínio relativista, por mais objetivos que fossem os seus critérios, não deixava de reproduzir a sanha de Robespierre. Não só ele continuava com vontade de matar quem não gostasse dos livros que ele apreciava, mas agora estava munido de argumentos objetivos para tanto.
Não estava me dizendo somente que o meu gosto ("burguês e reacionário", segundo ele) era resultado de uma formação cultural entre outras. Estava me anunciando o fim da discussão, com um argumento absoluto e irrefutável, ao transferir o foco de uma subjetividade (a obra) para uma objetividade sociológica (a voz que se exprime por meio da obra e por ela é representada). O aluno endossava, assim, uma compreensão bastante comum da literatura, segundo a qual um romance deve ser lido e apreciado "pelo que ele representa" e não "pelo que ele é", pelo que ele diz e não por inaugurar um outro modo de dizer e de pensar, ampliando assim a própria compreensão da literatura.
O que desperta o espírito de Robespierre em mim é menos o fato de haver gente no mundo que não gosta do que eu gosto do que o fato de dizerem que não percebem a diferença entre o que eu gosto e o que eu não gosto, por conta de uma ordem extraliterária, moral ou política.
Tanto eu como o aluno, entretanto, teremos que aprender a lidar e conviver com subjetividades conflitantes, se quisermos que a literatura sobreviva do modo libertário como foi concebida pela modernidade no Ocidente. Uma literatura que rompe com o que os seus contemporâneos (o aluno e eu) esperam e exigem dela e se recusa a seguir os caminhos que lhe indicam a crítica, a moral ou o mercado. Pois está determinada a ir além da mera representação social ou do documento de identidade, até onde eu e o aluno (e os nossos discursos) seremos obrigados a nos reinventar junto com ela.


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