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Conversa indiscreta
Livro faz viagem cronológica pela filmografia de Hitchcock e retrata paixão pelo cinema
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
O primeiro encontro entre
François Truffaut e Alfred Hitchcock foi, literalmente, um banho
de água fria. Aconteceu no inverno de 1955, quando Hitchcock estava na França finalizando "Ladrão de Casaca".
Truffaut e seu colega de redação
de "Cahiers du Cinéma", Claude
Chabrol, aproveitaram para marcar uma entrevista com o ídolo.
No dia marcado, entraram na sala
em que Hitchcock trabalhava, onde viram umas 15 vezes o mesmo
trecho do filme, com Brigitte Auber e Cary Grant. Foram esperar
Hitchcock no bar do estúdio e,
ainda aparvalhados com a breve
sessão exclusiva, não notaram o
tanque de água congelada à sua
frente. A fina camada de gelo rachou e os dois afundaram o gravador, inutilizado.
Nas palavras de Truffaut: "Foi
tiritando em nossas roupas encharcadas que nos apresentamos
a Hitchcock. Ele olhou para nós
sem fazer comentários e aceitou
um novo encontro para aquela
noite. No ano seguinte, de volta a
Paris, nos identificou de imediato
no meio de jornalistas e disse:
penso em vocês cada vez que vejo
duas pedras de gelo chocando-se
num copo de uísque".
Sete anos depois, em 1962, Truffaut escreveria uma longa carta a
Hitchcock. Estava revoltado com
as cobranças dos críticos americanos que ainda desprezavam o cineasta de "Psicose" e se recusavam a concordar com a valorização empreendida pelos franceses
desde os anos 50. Teve então a
idéia de propor a Hitchcock um
"questionário sistemático", que
poderia resultar em "um livro capaz de modificar a opinião dos
críticos americanos."
Na carta ao mestre, evocou a
história das "pedras de gelo" e lhe
propôs uma nova entrevista, a seco e muito mais longa. No fim da
carta, dá um golpe de misericórdia em busca da aceitação: "O
conjunto seria introduzido por
um texto que escreverei e que poderia se resumir assim: se um dia
o cinema se visse novamente privado de som, muitos cineastas estariam condenados ao desemprego, mas entre os sobreviventes estaria Hitchcock. E todo mundo finalmente compreenderia que ele
é o melhor diretor do mundo."
Hitchcock respondeu a Truffaut
com um telegrama em francês,
confessando ter-se comovido às
lágrimas. Propunha, então, as entrevistas para o fim de agosto, depois das filmagens de "Os Pássaros". E assim foi. Deu-se um encontro feliz, mediado pela presença essencial de Helen Scott (que
funcionou muito mais que uma
tradutora) e que resultou naquele
que, possivelmente, é o melhor livro já escrito sobre cinema.
"Hitchcock/Truffaut", que já
havia sido editado por aqui em
1986, pela Brasiliense, mas há
anos encontrava-se esgotado até
nos sebos, enfim ganha uma reedição brasileira, pela Companhia
das Letras. É um livro para se ler
com o mesmo prazer que se vê
um filme de Hitchcock. Tem uma
dimensão jornalística/informativa e outra poética. Tanto pode ser
encarado como um trabalho de
investigação sobre o processo
criador ou como a história emocionante de uma amizade em torno da paixão pelo cinema.
Hitchcock, que estaria completando 105 anos no próximo dia 13
de agosto, embarca na proposta
com abertura e disposição. O livro
não se detém em detalhes biográficos, embora conte algumas passagens importantes.
Logo na sua primeira resposta,
por exemplo, ele conta um bizarro fato de sua infância: "Eu devia
ter quatro ou cinco anos. Meu pai
me mandou à delegacia de polícia
com uma carta. O delegado leu e
me trancou na cela por uns cinco
ou dez minutos, dizendo: É isso
que se faz com garotinhos levados". Hitchcock jamais se esqueceu do episódio mas não faz idéia
do motivo da "prisão".
O livro segue com determinação quase messiânica a proposta
de descrever um processo de trabalho. Cada página é parte de
uma busca para descrever o pensamento puramente cinematográfico, aquele que fez de Hitchcock "um dos maiores inventores
de forma de toda a história do cinema", pois nele "a forma não
embeleza o conteúdo, mas o cria"
(como afirmaram Chabrol e Eric
Rohmer no livro que escreveram
ainda em 1957).
Portanto a viagem é cronológica
pela filmografia de Hitchcock, e
não faltam momentos inspirados
das duas partes. Truffaut mostra
um conhecimento não apenas enciclopédico mas também analítico, inteligente. E Hitchcock destila sua fina ironia inglesa. Estão lá
desde os motivos de suas famosas
aparições até a explicação essencial do que é um "McGuffin", assim como frases de efeito como
"certos filmes são fatias de vida, os
meus são fatias de bolo."
HITCHCOCK/TRUFFAUT. Editora:
Companhia das Letras. 368 páginas.
Quanto: R$ 65.
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