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Brian vai à guerra
Brian De Palma fala à Folha sobre "Redacted", seu novo longa-metragem, exibido no Festival de Veneza e alvo de polêmicas já em sua primeira projeção; longa trata de episódio cruel da Guerra
do Iraque
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA, EM VENEZA
Em setembro do ano passado, quando estava no Festival
de Toronto para apresentar
"Dália Negra", Brian De Palma
foi procurado por um representante da produtora HDNet
Films com uma proposta: desenvolver um filme de US$ 5
milhões (cerca de R$ 9,8 milhões), sobre qualquer tema,
desde que realizado em vídeo
digital de alta definição.
De Palma respondeu que
concordaria, se encontrasse
um assunto adequado ao formato. Pouco depois, tomou conhecimento de um incidente
da Guerra do Iraque em que
soldados americanos de um
posto de controle estupraram
uma garota de 14 anos, massacraram sua família, atiraram no
rosto dela e incendiaram seu
corpo. "Como esses garotos podem ter chegado a esse ponto?
Procurando respostas, li blogs
de soldados, vi seus vídeos
amadores, surfei por seus websites e pelo material postado no
YouTube. Estava tudo lá, e tudo
em vídeo", disse o diretor.
O resultado desse trabalho
foi exibido pela primeira vez na
sexta-feira passada, na competição do Festival de Veneza,
provocando alto impacto. "Redacted", que também será exibido no Festival de Toronto e
tem estréia garantida no Brasil,
é a recriação ficcional desse
episódio brutal, na forma de
um documentário multiforme,
reproduzindo os meios de captação e reprodução da imagem
digital hoje: diários filmados,
documentários amadores, câmeras de vigilância, testemunhos on-line.
De Palma fez um filme profundamente político, não só pelo seu conteúdo, mas também
pela proposta de uma reflexão
em torno da imagem hoje. "Redacted" significa "editado", numa referência à forma como a
informação sobre a guerra do Iraque vem sendo veiculada pelos grandes meios de comunicação -"na base da omissão, da mentira e da censura", nas palavras do diretor. Em entrevista
à Folha, De Palma transbordou sua indignação com a guerra e criticou, ainda, a indústria
do cinema americano.
FOLHA - Depois da primeira exibição de "Redacted", a platéia parecia
atônita, sem saber como reagir ao
filme. O que achou da reação?
BRIAN DE PALMA - Antes de Veneza, mostrei o filme para poucos
amigos, produtores e distribuidores. Notei essa mesma reação, em todas as exibições que
fiz. Não sei bem o porquê, talvez por ser algo novo as pessoas
ainda não saibam exatamente
como processar o que viram.
Quando você faz algo inovador,
é natural que perguntem o que
é isso. Mas só estou apresentando um material na forma
como eu o descobri. Procurei
determinadas informações, e a
forma do filme evoluiu naturalmente dessa pesquisa. Fiz "Redacted" do modo que me pareceu o mais correto para expor o tipo de material que encontrei.
FOLHA - Como foi o trabalho de
pesquisa?
DE PALMA - Basicamente, usei
as ferramentas de busca da internet. Juntei mais de cem páginas de material e descobri tudo o que você vê no filme, não
inventei absolutamente nada.
O que selecionei e o que ficou
na versão final é baseado em
material de plena confiança.
Está tudo lá. Nem sempre pudemos identificar a origem de
certos materiais, que, por isso,
não foram usados.
FOLHA - Além da pesquisa virtual,
você conversou com soldados?
DE PALMA - Sim, vários. A pesquisa não se limitou à internet.
E o mais impressionante é que
as histórias são as mesmas, exatamente as mesmas do Vietnã!
Os veteranos se fazem as mesmas perguntas, dizem as mesmas coisas: o que fomos fazer
lá? Todo mundo parece me
odiar! Que diabos é isso? Meu
amigo explodiu atrás de mim! É
exatamente a mesma história
que contei em "Pecados da
Guerra" [filme de 1989].
FOLHA - Você encontrou muitas
barreiras legais enquanto desenvolvia esse filme?
DE PALMA - Sim. Precisei consultar advogados para saber o
que poderia ser usado o tempo
todo. O material que cai na internet não é de domínio público se você for fazer um filme de
ficção. E isso é uma loucura.
Nunca entendi direito como
funciona essa legislação. Em
nosso país, se você faz uma obra
de ficção baseada em algo que
supostamente aconteceu de
verdade, pode facilmente ser
processado pelas pessoas que
viveram a história -mesmo depois de essa história ter sido
publicada, impressa e transmitida pela TV infinitas vezes. Tudo, no filme, é ficcionalizado,
mas não menos verdadeiro.
FOLHA - Por que a maior parte dos
americanos não chegou a esse material, se ele está disponível na web?
DE PALMA - Isso é curioso. Não
sei porque, mas toda a forma
como a informação circula mudou, e muita gente ainda não
sabe como chegar até ela. Do
Vietnã para cá, acho que o aspecto do mundo que sofreu a
maior transformação foi a mídia, que hoje não informa, mas
esconde a informação. É preciso fazer um filme sobre isso: o
que aconteceu com a mídia?
Que tipo de transformação se
efetuou? A primeira Guerra do
Golfo, por exemplo, foi impressionante. Parecia um show de
fogos de artifício. Ninguém via
onde as bombas caíam, eram
apenas luzes no céu. Mas, Deus
do céu, aquelas bombas estavam caindo sobre pessoas!
FOLHA - Ter feito esse filme em vídeo foi um ato político?
DE PALMA - Não, o vídeo não é
político por ser vídeo, é apenas
um meio que está aí, disponível.
O fato é que surgiu toda uma
nova indústria criativa a partir
do vídeo e da tecnologia digital
e nós não fazemos idéia de onde
ela vai parar. Toda vez que me
conecto na internet, descubro
alguma coisa nova. Há correspondentes de TV em várias
partes do mundo que transmitem programas ao vivo, de suas
próprias casas. Hoje, cada um
pode ter seu próprio programa
de TV. Isso é uma revolução.
FOLHA - Como você espera que seu
filme seja recebido nos EUA?
DE PALMA - Fiz esse filme o mais
silenciosamente possível, não
queria que a notícia vazasse e
algo pudesse atrapalhar nosso
processo de trabalho. Tenho
certeza de que "Redacted" vai
desagradar muita gente. Sua
primeira exibição está sendo
aqui no Festival de Veneza.
Acredito que, nos EUA, a reação vai ser bastante polarizada.
A direita vai chamá-lo de propaganda comunista. Será uma
reação forte.
FOLHA - Qual será o desenvolvimento da guerra a partir de agora?
Haverá uma retirada em um curto
espaço de tempo?
DE PALMA - Não. Essa guerra
ainda vai durar muito tempo.
Provocamos um caos e agora fica difícil sair dele. Alguém acreditou, algum dia, que nossa presença no Iraque tornaria algo
melhor? Obviamente não sabemos nada! O que estamos fazendo lá? Mas a consciência do
desastre está cada vez maior.
Talvez com o novo Congresso,
as coisas comecem a mudar. O
desenrolar dessa guerra foi tão
ruim e há tanta mentira que
não há como evitar que as coisas venham à tona.
FOLHA - É possível voltar à ficção
depois de um filme como esse?
DE PALMA - Não sei... Quero ainda fazer muitos filmes, mas filmes que sejam do meu interesse, do coração. Estou cansado
de lidar com todo o "mambo
jambo" do cinema. Todos os
executivos de Hollywood, hoje,
vieram da televisão. Há muita
coisa boa na TV, mas esses executivos simplesmente não entendem nada de cinema. Eles
querem produzir coisas que
passem no horário nobre.
FOLHA - Como vê as perspectivas
de sua carreira, daqui para adiante?
DE PALMA - Qual é o objetivo de
uma carreira cinematográfica
hoje? Fazer um sucesso atrás
do outro? Por quê? Depois que
você juntou um certo dinheiro,
qual o sentido em ganhar mais
dinheiro? Essa é a questão.
Quando fiz "Missão: Impossível", meu filme de maior sucesso, Tom Cruise veio me perguntar se queria fazer "MI:2".
Mas por quê? O que pode haver
de interessante criativamente
aí? Vejam Sam Raimi, um diretor talentoso, o que ele tem feito? Vai passar o resto da vida fazendo "Homem-Aranha"! Vão
fazer mais três filmes! Sinceramente, esse é um preço alto demais para se ganhar um bilhão
de dólares. Na minha idade, vou
aproveitar o que me resta.
O jornalista PEDRO BUTCHER se hospeda a convite do Festival de Veneza
NA INTERNET - Leia a entrevista na
íntegra www.folha.com.br/ilustradanocinema
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