São Paulo, terça-feira, 04 de setembro de 2007

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Brian vai à guerra

Brian De Palma fala à Folha sobre "Redacted", seu novo longa-metragem, exibido no Festival de Veneza e alvo de polêmicas já em sua primeira projeção; longa trata de episódio cruel da Guerra do Iraque

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA, EM VENEZA

Em setembro do ano passado, quando estava no Festival de Toronto para apresentar "Dália Negra", Brian De Palma foi procurado por um representante da produtora HDNet Films com uma proposta: desenvolver um filme de US$ 5 milhões (cerca de R$ 9,8 milhões), sobre qualquer tema, desde que realizado em vídeo digital de alta definição.
De Palma respondeu que concordaria, se encontrasse um assunto adequado ao formato. Pouco depois, tomou conhecimento de um incidente da Guerra do Iraque em que soldados americanos de um posto de controle estupraram uma garota de 14 anos, massacraram sua família, atiraram no rosto dela e incendiaram seu corpo. "Como esses garotos podem ter chegado a esse ponto?
Procurando respostas, li blogs de soldados, vi seus vídeos amadores, surfei por seus websites e pelo material postado no YouTube. Estava tudo lá, e tudo em vídeo", disse o diretor.
O resultado desse trabalho foi exibido pela primeira vez na sexta-feira passada, na competição do Festival de Veneza, provocando alto impacto. "Redacted", que também será exibido no Festival de Toronto e tem estréia garantida no Brasil, é a recriação ficcional desse episódio brutal, na forma de um documentário multiforme, reproduzindo os meios de captação e reprodução da imagem digital hoje: diários filmados, documentários amadores, câmeras de vigilância, testemunhos on-line.
De Palma fez um filme profundamente político, não só pelo seu conteúdo, mas também pela proposta de uma reflexão em torno da imagem hoje. "Redacted" significa "editado", numa referência à forma como a informação sobre a guerra do Iraque vem sendo veiculada pelos grandes meios de comunicação -"na base da omissão, da mentira e da censura", nas palavras do diretor. Em entrevista à Folha, De Palma transbordou sua indignação com a guerra e criticou, ainda, a indústria do cinema americano.  

FOLHA - Depois da primeira exibição de "Redacted", a platéia parecia atônita, sem saber como reagir ao filme. O que achou da reação?
BRIAN DE PALMA
- Antes de Veneza, mostrei o filme para poucos amigos, produtores e distribuidores. Notei essa mesma reação, em todas as exibições que fiz. Não sei bem o porquê, talvez por ser algo novo as pessoas ainda não saibam exatamente como processar o que viram.
Quando você faz algo inovador, é natural que perguntem o que é isso. Mas só estou apresentando um material na forma como eu o descobri. Procurei determinadas informações, e a forma do filme evoluiu naturalmente dessa pesquisa. Fiz "Redacted" do modo que me pareceu o mais correto para expor o tipo de material que encontrei.

FOLHA - Como foi o trabalho de pesquisa?
DE PALMA
- Basicamente, usei as ferramentas de busca da internet. Juntei mais de cem páginas de material e descobri tudo o que você vê no filme, não inventei absolutamente nada.
O que selecionei e o que ficou na versão final é baseado em material de plena confiança.
Está tudo lá. Nem sempre pudemos identificar a origem de certos materiais, que, por isso, não foram usados.

FOLHA - Além da pesquisa virtual, você conversou com soldados?
DE PALMA
- Sim, vários. A pesquisa não se limitou à internet. E o mais impressionante é que as histórias são as mesmas, exatamente as mesmas do Vietnã!
Os veteranos se fazem as mesmas perguntas, dizem as mesmas coisas: o que fomos fazer lá? Todo mundo parece me odiar! Que diabos é isso? Meu amigo explodiu atrás de mim! É exatamente a mesma história que contei em "Pecados da Guerra" [filme de 1989].

FOLHA - Você encontrou muitas barreiras legais enquanto desenvolvia esse filme?
DE PALMA
- Sim. Precisei consultar advogados para saber o que poderia ser usado o tempo todo. O material que cai na internet não é de domínio público se você for fazer um filme de ficção. E isso é uma loucura.
Nunca entendi direito como funciona essa legislação. Em nosso país, se você faz uma obra de ficção baseada em algo que supostamente aconteceu de verdade, pode facilmente ser processado pelas pessoas que viveram a história -mesmo depois de essa história ter sido publicada, impressa e transmitida pela TV infinitas vezes. Tudo, no filme, é ficcionalizado, mas não menos verdadeiro.

FOLHA - Por que a maior parte dos americanos não chegou a esse material, se ele está disponível na web?
DE PALMA
- Isso é curioso. Não sei porque, mas toda a forma como a informação circula mudou, e muita gente ainda não sabe como chegar até ela. Do Vietnã para cá, acho que o aspecto do mundo que sofreu a maior transformação foi a mídia, que hoje não informa, mas esconde a informação. É preciso fazer um filme sobre isso: o que aconteceu com a mídia?
Que tipo de transformação se efetuou? A primeira Guerra do Golfo, por exemplo, foi impressionante. Parecia um show de fogos de artifício. Ninguém via onde as bombas caíam, eram apenas luzes no céu. Mas, Deus do céu, aquelas bombas estavam caindo sobre pessoas!

FOLHA - Ter feito esse filme em vídeo foi um ato político?
DE PALMA
- Não, o vídeo não é político por ser vídeo, é apenas um meio que está aí, disponível.
O fato é que surgiu toda uma nova indústria criativa a partir do vídeo e da tecnologia digital e nós não fazemos idéia de onde ela vai parar. Toda vez que me conecto na internet, descubro alguma coisa nova. Há correspondentes de TV em várias partes do mundo que transmitem programas ao vivo, de suas próprias casas. Hoje, cada um pode ter seu próprio programa de TV. Isso é uma revolução.

FOLHA - Como você espera que seu filme seja recebido nos EUA?
DE PALMA
- Fiz esse filme o mais silenciosamente possível, não queria que a notícia vazasse e algo pudesse atrapalhar nosso processo de trabalho. Tenho certeza de que "Redacted" vai desagradar muita gente. Sua primeira exibição está sendo aqui no Festival de Veneza.
Acredito que, nos EUA, a reação vai ser bastante polarizada. A direita vai chamá-lo de propaganda comunista. Será uma reação forte.

FOLHA - Qual será o desenvolvimento da guerra a partir de agora? Haverá uma retirada em um curto espaço de tempo?
DE PALMA
- Não. Essa guerra ainda vai durar muito tempo. Provocamos um caos e agora fica difícil sair dele. Alguém acreditou, algum dia, que nossa presença no Iraque tornaria algo melhor? Obviamente não sabemos nada! O que estamos fazendo lá? Mas a consciência do desastre está cada vez maior.
Talvez com o novo Congresso, as coisas comecem a mudar. O desenrolar dessa guerra foi tão ruim e há tanta mentira que não há como evitar que as coisas venham à tona.

FOLHA - É possível voltar à ficção depois de um filme como esse?
DE PALMA
- Não sei... Quero ainda fazer muitos filmes, mas filmes que sejam do meu interesse, do coração. Estou cansado de lidar com todo o "mambo jambo" do cinema. Todos os executivos de Hollywood, hoje, vieram da televisão. Há muita coisa boa na TV, mas esses executivos simplesmente não entendem nada de cinema. Eles querem produzir coisas que passem no horário nobre.

FOLHA - Como vê as perspectivas de sua carreira, daqui para adiante?
DE PALMA
- Qual é o objetivo de uma carreira cinematográfica hoje? Fazer um sucesso atrás do outro? Por quê? Depois que você juntou um certo dinheiro, qual o sentido em ganhar mais dinheiro? Essa é a questão.
Quando fiz "Missão: Impossível", meu filme de maior sucesso, Tom Cruise veio me perguntar se queria fazer "MI:2".
Mas por quê? O que pode haver de interessante criativamente aí? Vejam Sam Raimi, um diretor talentoso, o que ele tem feito? Vai passar o resto da vida fazendo "Homem-Aranha"! Vão fazer mais três filmes! Sinceramente, esse é um preço alto demais para se ganhar um bilhão de dólares. Na minha idade, vou aproveitar o que me resta.


O jornalista PEDRO BUTCHER se hospeda a convite do Festival de Veneza
NA INTERNET - Leia a entrevista na íntegra www.folha.com.br/ilustradanocinema


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