São Paulo, sexta-feira, 04 de setembro de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

O herói e a lágrima


As infâncias se parecem; lendo as recordações de Sartre, insensivelmente lembrei-me de outras


FOI BOM reler Sartre, que anda meio fora da moda. Suas recordações de infância estão reunidas num pequeno livro grande: "As Palavras". Não lembra Renan com suas reminiscências da juventude. Lembra o próprio Sartre. A parte episódica, a anedota de sua infância -toda a infância termina numa anedota às vezes dramática- não é novidade.
De uma forma geral, as infâncias se parecem. Lendo suas recordações, insensivelmente lembrei-me de outras infâncias: a de José Lins do Rego, em "Menino de Engenho"; a de Raul Pompéia, a de Dickens, a de Chaplin, a de Hardy -a criança diante da vida é uma constante de medo, encantamento e velhacaria.
Sartre não fez exceção à regra. E, para aqueles que conhecem seus romances, esse lado episódico de sua infância é ocioso: sente-se, em sua obra adulta, o menino que o autor teria sido. Roquentin e Mathieu estão em germinação naquele garoto estrábico, calado e sonhador, que vivia ao lado de um insuportável e ridículo homem semicélebre: o velho Karl Schweitzer.
Periodicamente, volto ao livro, nem sei por quê. Desta vez, reparei e guardei uma confissão singela e importante de Sartre quanto às suas leituras. Ao contrário de muitos autores que, em sua maturidade, repudiam e tripudiam sobre as suas primeiras leituras, Sartre não apenas confessa essas leituras, mas defende-as com lucidez e inteligência. Não apenas com o tempero da saudade de si mesmo.
Muitos dos leitores citados por Sartre não são conhecidos aqui no Brasil: são escritores praticamente locais. Mas a grande maioria é constituída por alguns nomes que, injustificadamente, são colocados à margem de grande literatura.
Tirante Lewis Carol, Hans Christian Andersen e os Irmãos Grimm, aceitos -ou tolerados- pela crítica oficial, constatamos o sagrado repúdio pelos nomes de diversos escritores geniais como Charles Perrault, Michel Zevaco.
O próprio Julio Verne é apenas tolerado pela crítica acadêmica, que a si mesmo se considera nobre. Seus livros, sua literatura não podem ser negados nem omitidos numa história séria de literatura. Mas os historiadores e os críticos citam-no como uma esmola, uma condescendência, uma generosidade a um gênero tido como menor.
Sartre, sem fazer a apologia direta desses autores -e na realidade não é o caso para uma apologia- os situa perfeitamente. Cita Zevaco como escritor de talento -o que na boca de Sartre é uma consagração.
E, quanto a Julio Verne, não há o elogio imbecil e óbvio. Há apenas a confissão do leitor apaixonado e comovido.
Não é uma criança que elogia Julio Verne. É um adulto, prêmio Nobel de Literatura, filósofo e romancista que marcou esplendidamente os meados do século 20. E o que Sartre diz de "Miguel Strogoff", por exemplo, vale como um ensaio sobre o heroísmo, independentemente de sua causa ou bandeira. Até então, a crítica oficial tinha tomado Julio Verne como um romancista de viagens e aventuras, dotado de boa imaginação, criador inconteste do gênero ficção científica.
Foi nessas categorias que Julio Verne foi oficializado e guardado para a história. Mas Sartre vai muito além. Para ele, "Miguel Strogoff" é quase "Moby Dick". As relações entre o Absoluto e o Relativo, a ânsia de um herói que caminha, caminha sempre para marcar e perseguir uma missão -eis, em linhas gerais, o enredo de quase todas as epopeias humanas, de Homero a Cervantes. Julio Verne tem o seu Ulisses, o seu Dom Quixote, o seu Cid.
Pelo menos foi assim que o amou o menino Jean-Paul. Pelo menos é assim que o entende o velho Jean-Paul. De minha parte, nunca li coisa mais bonita que isso: Sartre relembrando sua primeira leitura de Miguel Strogoff, o herói "salvo pelo milagre de uma lágrima".
Para aqueles que nunca leram "Miguel Strogoff, O Correio do Tzar", lembro que ele ia ter os olhos queimados pela espada incandescida. Olhando o céu que nunca mais veria, vendo o rosto da mulher que amava, o herói chorou. A lágrima criou uma pequena película, e o calor do aço não inutilizou para sempre a sua visão.
Além da literatura romântica que vulgariza a lágrima, Verne a colocou num momento de verdade que salvou um herói.


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