São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Cuenca narra amores inviáveis em Tóquio

Novo trabalho do escritor carioca é pontuado por elementos fantásticos, da ficção científica e da cultura pop

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

O projeto Amores Expressos enviou 17 escritores para diferentes cidades do mundo, a fim de que vivessem um mês no exterior e extraíssem da experiência uma obra de ficção.
A iniciativa foi cercada de polêmica, acusada de promover "turismo literário" às custas da Lei Rouanet. Mas, até onde se sabe, o financiamento público não ocorreu, e os primeiros volumes começaram a vir à luz em 2008. O novo lançamento é o romance "O Único Final Feliz Para Uma História de Amor É um Acidente", de João Paulo Cuenca, 32.
O carioca passou sua temporada em Tóquio e, ciente das limitações e do artificialismo do projeto, teve a perspicácia de não forjar seu livro com pretensiosa seriedade. Criou um romance extravagante e de construção muito livre, pontuada por elementos fantásticos, da ficção científica e da cultura pop, como se a experiência do Japão não fosse apenas aquela feita in loco, mas também constituída dos vestígios deixados no imaginário por filmes, desenhos animados etc. Há três histórias de amor no livro. A primeira é a do assalariado Shunsuke Okuda pela garçonete romena Iulana. A outra é a da mesma Iulana pela dançarina Kazumi.
A terceira é a do afeto que a boneca sexual Yoshiko desenvolve por seu dono, o poeta Atsuo Lagosta Okuda, controlador de um tentacular aparato de vigilância (chamado "submarino"), com o qual segue cada passo de Shunsuke, seu filho.
Todas as três histórias falam de amores inviáveis, marcados pelo estranhamento e pela incompatibilidade -o que garante a unidade do romance.

ANIMAL DESCONHECIDO
Dado que os corpos (e os desejos) são desiguais, o ser amado é sempre um "animal desconhecido", como se pertencesse a outra espécie, diferente da humana. Não é possível harmonizar os corpos exceto na felicidade de um acidente fatal.
Seria este o tema principal do livro, não houvesse outro, mais interessante: o do panóptico-submarino do pai, que, num primeiro nível, age como bloqueador da autonomia existencial do filho. Ocorre que o filho é ao mesmo tempo objeto e sujeito do controle. "Aprendi a vigiar sendo vigiado por meu pai", diz Shunsuke.
A interiorização da vigilância contribui para ampliar o aspecto fantasmático da própria realidade -esta sensação de estar em Tóquio como no fundo de "águas imundas", onde todos parecem flutuar como espectros.
Como o romance é menos psicológico do que social, em certo momento o opressivo superego vai se materializar em plena rua, e o sr. Lagosta, o pai, se transformará num gigantesco crustáceo, pronto a destruir Tóquio e sua "multidão juvenil". "Parecem aliviados: finalmente, pela primeira vez na sua vida, algo está acontecendo. Algo real!", provoca o autor.
O real é monstruoso, mas os monstros também são reais, parece dizer Cuenca, que tem ainda um objetivo perverso: desafiar as artimanhas do narrador realista e expor a própria maquinação "panóptica" da ficção.
Labiríntico e ardiloso, "O Único Final Feliz..." é mais forte no conjunto que nos detalhes. O escritor, às vezes, se regozija demais com seus próprios jogos, perdendo o chão em situações que não passam de anedotas ou filosofismos um tanto pueris. Mas são problemas miúdos e não chegam a desanimar o leitor, que segue com curiosidade a escrita imaginativa de Cuenca, saltando de artifício em artifício.


O ÚNICO FINAL FELIZ PARA UMA HISTÓRIA DE AMOR É UM ACIDENTE

AUTOR João Paulo Cuenca
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 36,50 (152 págs.)
AVALIAÇÃO bom




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