São Paulo, quarta-feira, 04 de outubro de 2006

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MARCELO COELHO

O homem de gelo

Alckmin pode até ser picolé de chuchu, mas mostrou inabalável apetite pelo poder

TENTO REMEMORAR o que foi a campanha de Geraldo Alckmin até agora, e o que surge são imagens gastronômicas: perdi a conta das fotografias do candidato comendo pastel, tomando cafezinho, entrando num bandejão, experimentando não sei que famoso sanduíche de mortadela... Se lhe derem mariscos, ouriços, buchadas, não hesitará: apesar da aparência ascética, seu apetite é colossal.
Uma das primeiras cenas de sua campanha no horário político mostrava-o diante de uma mesa farta de casa interiorana, elogiando a comida de sua ama-seca. Ironizei, num texto que já faz parte do passado, a sem-gracice com que Alckmin tecia elogios à tal "dona Nhá".
Ele cometia um deslize, a meu ver, classificando de "imbatível" o arroz-com-feijão da cozinheira. Se havia uma coisa imbatível, naquele momento, era a candidatura Lula. Não houve analista político que não desdenhasse das chances de "Geraldo".
Agora, o picolé de chuchu ameaça o governo do Fome Zero. Curioso que sejam raríssimas as fotos de Lula comendo alguma coisa. Os marqueteiros devem ter concluído que isso acentuava uma imagem excessivamente popular e proletária. O físico robusto do candidato do PT, a dignidade do cargo presidencial, o interesse em depurar, espiritualizar, sutilizar o que Lula possa ter de tosco aos olhos da classe média contribuíram para evitar a divulgação de imagens desse tipo. Com Alckmin, ocorre o contrário.
O nariz afilado, os gestos de médico, o sorriso eclesiástico, a silhueta esguia e a fala insossa do candidato impuseram à sua campanha a necessidade de uma espécie de vacina simbólica. Ele tinha de contaminar-se com as bactérias de todos os quibes de padaria, de todas as maioneses de comício, de todos os acarajés suspeitos que lhe aparecessem pela frente.
Uma candidatura que teve início num restaurante de alto luxo (quando os cardeais do PSDB, unânimes no desfrute de bons vinhos, todavia se desentenderam a respeito de Serra) aceitou bravamente esse entupimento de pastéis e mortadelas.
Alckmin pode até ser um picolé de chuchu, mas demonstrou um calmo e inabalável apetite pelo poder. Não disse nada até agora. Ao contrário de FHC, Bornhausen, Tasso Jereissati ou Artur Virgílio, soube manter a boca fechada, abrindo-a apenas nos balcões de lanchonete.
Toda fraqueza parece força, quando obtém os resultados desejados. Diante das forças de Napoleão, o comandante russo Kutuzoff decidiu não fazer nada. Um grande aliado, o general Inverno, determinou a derrota dos franceses em 1812. Como Kutuzoff, o gelado Alckmin teve a sorte, o acaso, a tropical incompetência dos Tabajaras a seu favor.
Sem mover um músculo, deixou o PT soçobrar na autoconfiança e na falta de autocrítica. Sem se mexer, vê agora os aliados que o desprezavam há meses enfileirar-se sob seu fleumático, discreto, talvez inexistente comando.
É estranho pensar num postulante à Presidência da República tão vago, tão avesso ao perfil de liderança que Aécio Neves e José Serra, para não falar de FHC e Bornhausen, possuem a seu modo. Um mínimo de vaidade, ou melhor, de brio, seria de esperar que corresse nas veias diluídas e transparentes de Geraldo. Tudo vira maquiavelismo, entretanto, quando as coisas dão certo.
No caso de Alckmin, até a anemia ganha portanto explicação. De um lado, ele se apresenta como um tucano suavíssimo, incapaz de incorrer no alarido histérico de seus correligionários. Ganha respeito do eleitor, porque foi o único oposicionista a não entrar em desespero; foi o anti-Heloísa Helena nesse aspecto. De outro lado, não foi exatamente o anti-Lula que a oposição esperava que ele fosse. Contra um Fome-Zero pronto a fazer alianças à direita, ele foi o zero à esquerda, pronto a encarnar (por W.O.) o Estado liberal dos sonhos direitistas: invisível, cauteloso, mas nada cego diante dos próprios interesses. Agiu como quem já está no poder.
A direita pefelista viveu dias de delírio revolucionário. Alckmin, não: mostrou-se um verdadeiro conservador. Dedicou-se a manter o que já havia conquistado, a saber, a candidatura. O resto viria naturalmente, como lucro, do mesmo modo que um investidor não muda sem esta nem aquela suas posições em carteira. Suas ações subiram a passo lento e seguro.
Neófito no mercado, Lula apostou alto, apostou a própria alma, pactuou com o Diabo; terá de temer um jesuíta. Frio, cercado do incenso dos turíbulos, sorriso fixo, Alckmin avança, crucifixo em punho, ao encontro do Grande Pecador.


coelhofsp@uol.com.br

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