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CONTARDO CALLIGARIS
O segredo da vida de um casal
Receita do amor que dura: amar o outro não apesar de sua diferença, mas por ele ser diferente
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EM GERAL , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as
histórias de amor acabam
quando os amantes se juntam (é o
modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo
intransponível (é o modelo Romeu e
Julieta).
No modelo Cinderela, o narrador
nos deixa sonhando com um "viveram felizes para sempre", que seria a
"óbvia" conseqüência da paixão.
No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O
destino adverso que separou os
amantes (ou os juntou na morte)
perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta
continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse
que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos
de família?
Talvez as histórias de amor que
acabam mal nos fascinem porque,
nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora
gloriosa da dificuldade, tragicômica
e inglória, da vida conjugal.
O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de
amor, mas para farsa ou vaudeville
-às vezes, para conto de terror, à la
"Dormindo com o Inimigo".
Durante décadas, Calvin Trillin
escreveu uma narrativa de sua vida
de casal, na revista "New Yorker" e
em alguns livros (por exemplo,
"Travels with Alice", viajando com
Alice, de 1989, e "Alice, Let's Eat",
Alice, vamos para a mesa, de 1978).
Nesses escritos, que são só uma
parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma
dobradinha humorística, em que
Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida.
À primeira vista, isso confirma a
regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin
eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin
não zombava da dificuldade da vida
de casal: ele nos divertia celebrando
a alegria do casamento. Qual era seu
segredo?
Pois bem, Alice, com quem Trillin
se casou em 1965, morreu em 2001.
Trillin escreveu "Sobre Alice", que
acaba de ser publicado pela Globo.
Esse pequeno e tocante texto de
despedida desvenda o segredo de
um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos.
O segredo é o seguinte: Calvin e
Alice, as personagens das crônicas,
não eram artifícios literários, eram
os próprios. A oposição entre os dois
foi, efetivamente, o jeito especial
que eles inventaram para conviver e
prolongar o amor na convivência.
Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo
de "Sobre Alice": "Minha mulher,
Alice, tem a estranha propensão de
limitar nossa família a três refeições
por dia". A graça está no fato de que a
"propensão" de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.
Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível
distinguir qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente
contempla, fascinado, uma espécie
desconhecida num documentário
do Discovery Channel.
Se amo e admiro o outro por ele
ser diferente de mim (e não apesar
de ele ser diferente de mim), não
posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin
acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o
de Alice.
Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença
inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma
universal, nem mesmo a norma do
casal.
Há quem diga que o parceiro ideal
é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula: Alice era quem
conseguia fazê-lo rir dele mesmo.
Com isso, ele descobriu a receita
do amor que dura.
Nota. Correção da semana passada: o site do Instituto Quatro Estações é www.4estacoes.com (sem br).
ccalligari@uol.com.br
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