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CONTARDO CALLIGARIS
Eleições americanas
Na hora em que escrevo estas
reflexões (segunda e terça-feira), não conheço o resultado
das eleições presidenciais americanas. Mas, de qualquer forma, a
batalha política do último ano
impõe uma reflexão.
Décadas atrás, o poeta Robert
Frost definiu assim o progressista
de esquerda (que nos EUA se chama "liberal"): "Um progressista
de esquerda é um sujeito de espírito tão aberto que, numa briga,
ele não consegue tomar seu próprio partido". A definição é citada pelos progressistas como prova
de sua generosidade esclarecida.
E pelos conservadores como prova da fraqueza inepta dos progressistas.
A frase evoca um tempo mais
simples (Robert Frost morreu em
1963), em que talvez houvesse só
três posições: os abastados, que
defendiam seus interesses, os pobres, que também defendiam seus
interesses (opostos aos dos ricos),
e os progressistas de esquerda,
que, embora abastados, defendiam os interesses dos pobres.
Quem foi militante nos anos 60
se lembra de que nem sempre era
pacífica a relação dos intelectuais
ou estudantes progressistas (geralmente, de classe média) com a
causa dos trabalhadores. A aliança entre operários e estudantes,
proclamada no 68 francês, não
dispensava alguns atritos. As direções sindicais e partidárias
achavam que os estudantes não
eram bem intelectuais "orgânicos" como mandava a teoria de
Gramsci, ou seja, não se integravam direito nas organizações
proletárias. E os estudantes descobriam com inquietude que algumas idéias de seus aliados proletários não eram necessariamente
progressistas.
No entanto essas discordâncias
não ameaçavam as alianças. Sindicalistas e militantes operários
podiam ser contrários ao divórcio
e ao aborto, podiam detestar as
feministas, zombar dos gays e
manifestar pontas explícitas de
racismo; nem por isso os estudantes deixavam de considerá-los
seus aliados. Um "patrão" podia
freqüentar a mesma igreja que
seus operários e manifestar as
mesmas idéias tradicionais nas
quais eles acreditavam; mesmo
assim, ele continuava sendo, para
eles, (na linguagem da época) o
"inimigo de classe". Os estudantes
podiam promover maluquices orgiásticas; eventualmente, os sindicalistas não os apresentariam a
suas famílias, mas nem por isso
eles deixariam de considerá-los
como seus aliados.
Em suma, o que definia os campos opostos era a função de cada
agente social na produção e na repartição do bolo. Como assinala
Frost, o intelectual progressista
podia escolher seu campo por razões ideais, mas isso, justamente,
fazia dele uma exceção.
Ora, sobretudo nos últimos dez
anos, nos EUA, acontece algo diferente. No centro do país, longe
das grandes áreas urbanas, concentra-se um exército de derrotados. São fazendeiros empobrecidos ou expropriados, vítimas do
fim dos subsídios agrícolas ou da
concentração da agroindústria.
São trabalhadores desempregados, vítimas da "liberdade" globalizada dos mercados, pois as indústrias migraram para países
complacentes ou importaram ilegalmente uma mão-de-obra barata e não sindicalizada. Esse
exército, em grande parte, vota
hoje no Partido Republicano. Ou
seja, vota a favor do agravamento
das mesmas políticas econômicas
que produziram sua decadência.
Por quê?
Surfando habilmente na onda
de repúdio que a contracultura
dos anos 60 e 70 produziu na
América profunda, os conservadores americanos conseguiram
uma proeza: hoje, muitos pobres e
derrotados atribuem sua miséria
a uma degenerescência moral pela qual culpam os progressistas.
Eles não entendem seu destino como conseqüência das políticas
que os atropelam, mas como efeito da crise dos valores tradicionais do passado. Claro, esse passado é, para eles, a época perdida
em que, no mínimo, eles conheciam a esperança de dias melhores.
Com isso, o fazendeiro expropriado e o desempregado sem
subsídios e sem assistência médica podem votar para um partido
que se opõe à intervenção do governo em matéria de seguro-saúde, que planejou acabar com o
imposto progressivo ou que condena qualquer controle dos preços mínimos pagos aos agricultores. Votam assim porque atribuem o fim de seu mundo não às
medidas econômicas que os golpearam, mas, por exemplo, à prática do aborto, à crise da família,
às uniões civis entre homossexuais ou ao desrespeito pela suposta vontade de Deus.
Na história recente do Ocidente,
os fascismos clássicos fornecem os
melhores exemplos de uma façanha comparável, pela qual os derrotados foram transformados em
milícias do conservadorismo
ideológico e, portanto, em cúmplices de sua própria ruína.
É urgente entender o que acontece hoje nos EUA e, em particular, qual foi (qual é), nesse acontecimento em curso, o papel da
Igreja Católica e de inúmeras denominações protestantes. Urgente, digo, não só para os americanos.
Nota: Thomas Frank acaba de
publicar "What's the Matter with
Kansas?" (O que Acontece com o
Kansas?), que é uma excelente
análise de como, no Estado de
Kansas, a ideologia conservadora
transformou muitas vítimas da
política econômica dos últimos 20
anos em militantes do próprio
partido que orquestrou o brutal
empobrecimento do Estado.
ccalligari@uol.com.br
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