São Paulo, sexta-feira, 04 de novembro de 2005

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CRÍTICA

Diretor baiano acerta em sua busca pela imperfeição

CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"A gente não sabe nunca ao certo onde colocar o desejo", cantava com sabedoria Caetano Veloso em "Pecado Original", que embalava as desventuras eróticas de "A Dama do Lotação". O filme é outro, mas a canção não soaria deslocada se acompanhasse os encontros e desencontros de Deco, Karinna e Naldinho em "Cidade Baixa", bela estréia na ficção de Sérgio Machado.
A sós, a dois ou a três, não importa o número, o fato é que com o desejo a conta nunca fecha. É o que experimentam na pele e na alma os amigos barqueiros, que levam uma vida aparentemente ordenada até que cruzam o caminho de Karinna, garota capixaba que ganha a vida na prostituição.
"Cidade Baixa" é o recorte dessas vidas desde o momento em que elas se encontram até o momento em que elas não acabam. Por isso não busca o inverossímil das ficções completas.
"Cidade Baixa" começa como um boat-movie e continua como perambulação pelas ruas de Salvador, ambas condições que permitem a Machado deixar a ficção aberta, com as linhas do destino combinando-se e recombinando-se não de modo aleatório, mas desenhando os fluxos do desejo, na medida em que este traça as linhas de atração e de repulsão entre seus personagens.
Ao fazer isso, opta por uma tradição moderna da ficção cinematográfica incompreensivelmente sem muitos representantes no Brasil. Nela, o filme resulta menos de um roteiro elaborado demais, mas, aparentemente deixa-se levar, ou melhor, nutre-se de uma atenção da câmera aos atores, guiada por seus gestos e olhares.
Nada disso seria encantador se não fosse a presença magnética da trinca Alice Braga, Lázaro Ramos e Wagner Moura, que se distancia do modo de representação da TV em proveito de composições de riscos. O naturalismo que alcançam não tem a ver com o "parecer natural" dos atores de novela. Aqui, eles são postos em cena inteligentemente menos como máscaras e mais como corpos, que a câmera não poupa de capturar em sua beleza e em sua feiúra, marcas, suor e lágrimas.
Em vez de buscar um cinema de fórmula (o "fácil", derivado do modelo atores de TV + linguagem de TV, ou o "difícil", cheio de recalque autoral, mas inconvincente), Machado acha seu lugar tomando um atalho no qual valoriza em detalhe a imperfeição: da história, dos atores, do roteiro e de tudo o que emana da vida.
Sem almejar uma indicação ao Oscar nem arrastar multidões ao cinema, "Cidade Baixa" representa aquilo que deve ser essencial na busca de uma cinematografia sólida: um ponto de vista assumido, a recusa do clichê, uma capacidade de traduzir idéias e emoções sem precisar mimetizar soluções alheias, enfim, um modo de expressão capaz de ser admirado pelo próprio país e pelo mundo.


Cidade Baixa
   
Direção: Sérgio Machado
Produção: Brasil, 2005
Com: Wagner Moura, Lázaro Ramos
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco, Sala UOL e circuito


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