São Paulo, sábado, 04 de novembro de 2006

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Crítica/teatro

Certezas em excesso comprometem o bom elenco de "Dúvida"

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Nas últimas décadas, o cinema ajudou muito o teatro a se tornar mais ágil e sintético, fragmentando a sua narrativa, ao mesmo tempo em que consagrou a interpretação interiorizada, menos "teatral". Assim, quando um cineasta veterano como Bruno Barreto estréia no palco, a curiosidade é grande para conferir ganhos e perdas desse translado.
O que há de ingênuo em "Dúvida" transparece logo no cenário de Cássio Amarante: pequenos sets montados e desmontados durante excessivos e previsíveis blecautes, em geral precedidos por um "close" de recorte de luz no rosto do ator, fazendo com que também a luz de Wagner Freire ceda a uma camisa-de-força.
No entanto, a prioridade dada à interpretação, nessa trama de longas cenas nas quais personagens se conflitam aos pares, constitui um bom veículo para a técnica de seus principais atores. Regina Braga, no papel da autoritária diretora de uma escola católica, é meticulosa em entonações e gestos, tornando nítida a sua função na trama sem perder nenhum detalhe de seu enfraquecimento progressivo. A excelência de sua interpretação faz com que se possa cobrar mais dela na articulação - a ausência de "s" em alguns "mais" de seu texto contradiz a auto-exigência de seu personagem.

Ambigüidades
Isabel Teixeira, no papel de uma jovem professora emotiva e ávida por endosso, sofre no começo com a ingenuidade quase caricatural com que o personagem é apresentado, mas tem sensibilidade e inteligência para aprofundá-lo.
Dan Stulbach tem o carisma necessário para fazer o protagonista, um padre cujo prestígio entre os alunos acaba tornando-o suspeito de pedofilia, ao proteger um aluno negro, o que complica os estigmas em jogo. Simpático e com boa técnica, o que convém a um chamariz de público, deixa-se contagiar, no entanto, pela sentenciosidade dos seus sermões, dando-lhe sempre, e muito cedo, um tom de vilão de novela.
Lena Roque também parece recitar seu texto, o que seu papel de mãe do aluno negro tolera menos. Assim, para uma trama construída em torno de ambigüidades e pequenas reviravoltas, a montagem sofre de excesso de certezas. Tudo é entregue desde o início: a culpa do padre, contradizendo o título, não gera a menor dúvida.
Não que o texto seja muito mais profundo do que isso. Apresentado como uma "parábola", pretensão endossada no ano passado por um Prêmio Pulitzer e vários Tony, a peça de John Patrick Shanley é hábil e bem escrita, mas se mantém prudentemente no limite da polêmica, em dose adequada para o moralismo da era Bush, mas que soa um pouco esnobe nas platéias tupiniquins. Estando mais à vontade com os palcos, Barreto poderá dispensar a garantia falaciosa da consagração no exterior em suas próximas montagens.


DÚVIDA   
Quando: sex., às 21h30, sáb., às 21h; dom., às 20h; até 10/12
Onde: Teatro Shopping Frei Caneca (r. Frei Caneca, 569, tel. 0/xx/11/ 3472-2229)
Quanto: de R$ 50 a R$ 60


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