São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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Editora plagiou traduções de clássicos

Editora Martin Claret publicou "Os Irmãos Karamazov" e "A República", entre outros, com cópias de traduções alheias

Com cerca de 500 livros de bolso no catálogo, empresa fundada na década de 70 negocia venda de 75% de suas ações para a Objetiva

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Em negociação para ter 75% de suas ações compradas pela Objetiva, braço brasileiro do poderoso grupo espanhol Santillana/Prisa, a Martin Claret é uma editora que já plagiou traduções. Os nomes dos verdadeiros tradutores foram omitidos e seus direitos, violados.
Criada nos anos 70, em São Paulo, pelo gaúcho Martin Claret, a empresa tem em seu catálogo cerca de 500 títulos de domínio público (de escritores mortos há mais de 70 anos) publicados em formato de bolso (preços de R$ 10,50 a R$ 18,90). Quatro casos de plágio estão confirmados: edições de "Os Irmãos Karamazov", "A República", "As Flores do Mal" e de três novelas de Franz Kafka reunidas num único volume-"A Metamorfose", "Um Artista da Fome" e "Carta a Meu Pai".
Lançada em 2003, a edição de "Os Irmãos Karamazov", de Fiodor Dostoievski (1821-1881), tem como tradutor um certo Alexandre Boris Popov, que não consta entre os poucos nomes que costumam passar obras do russo para o português. Na verdade, é cópia da tradução concluída em 1944 por Boris Schnaiderman para a extinta editora Vecchi.
As versões são praticamente idênticas. Apenas algumas expressões foram trocadas pela Martin Claret, como "muito encontradiço" por "bastante freqüente" na primeira página. Schnaiderman, um dos maiores especialistas em literatura russa do país, assinou o trabalho com o pseudônimo de Boris Solomonov e o renega.
"Eu era muito novo, precisava de dinheiro e cometi uma leviandade. Fiz o que podia na ocasião, mas minhas condições eram limitadas", diz ele, que, aos 90 anos, não pensa em processar a Martin Claret. "Na minha idade, quanto menos complicação, melhor", justifica.
Ele foi alertado do plágio pela editora 34, que pretendia lançar sua tradução, mas, diante da recusa, encomendou uma a Paulo Bezerra para 2008.

Coincidência impossível
"A República", de Platão (428/27 a.C. - 347 a.C.), saiu neste ano pela Martin Claret com tradução assinada por Pietro Nassetti. O repórter Euler de França Belém mostrou na edição de 14 de outubro do jornal "Opção", de Goiânia, que o texto é uma "adaptação" -com mudanças de palavras para ficar mais "acessível"- da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, uma das maiores especialistas portuguesas em Grécia Antiga.
A Folha confrontou os dois livros e comprovou que as diferenças são insignificantes, coincidência impossível no caso de uma tradução tão complexa. O livro da Fundação Calouste Gulbenkian foi lançado em Portugal em 1972 e está na 10ª edição. Procurada, a fundação não comentou o assunto.
No caso de "As Flores do Mal", outro lançamento de 2007 assinado por Nassetti, foi o poeta e tradutor Ivo Barroso quem apontou o plágio num artigo na revista virtual "Agulha". A edição copiada é de 1958, da série Clássicos Garnier, da Difusão Européia do Livro, com os versos de Charles Baudelaire (1821-1867) traduzidos pelo poeta paulista Jamil Almansur Haddad (1914-1988).
"É impossível haver identidade absoluta entre todos os versos de um poema. O máximo são dois versos iguais. Mas as únicas mudanças feitas foram de palavras difíceis por outras de mais fácil compreensão, e ainda alterando a métrica e a rima", explica Barroso, tradutor da poesia completa de Rimbaud. Herdeiros de Haddad não foram encontrados pela Folha.

Tradução 24 horas?
Em 2000, respondendo a uma intimação judicial da Companhia das Letras, a Martin Claret reconheceu ter usado uma parte das traduções de Modesto Carone para três novelas de Kafka (1883-1924): "A Metamorfose", "Um Artista da Fome" e "Carta a Meu Pai".
Indenizou Carone e retirou de circulação o livro, que tinha como tradutores Nassetti e Torrieri Guimarães.
A nova edição, de 2007, é assinada só por Guimarães, um jornalista de 74 anos que fez várias traduções de Kafka para a editora Hemus e de outros autores para a Martin Claret.
Um caso menos grave é o da editora Hedra, que reconheceu notas de sua versão de "Metamorfoses", de Ovídio, nas da Martin Claret.
Como a tradução e a maioria das notas são do poeta português Bocage (1765-1805), que já está em domínio público, descartou-se medida judicial.
Suspeita-se que muitos outros livros da Martin Claret usem traduções plagiadas, já que poucos e desconhecidos nomes -como Alex Marins e Jean Melville- assinam um arco eclético de títulos.
Pietro Nassetti teria traduzido Shakespeare, Maquiavel, Descartes, Rousseau, Voltaire, Schopenhauer, Balzac, Poe e outros.
"Se esse cara trabalhasse 24 horas por dia durante 60 anos, não traduziria nem a décima parte disso", afirma o especialista Ivo Barroso.
Segundo o artigo 184 do Código Penal, os plagiadores estão sujeitos a detenção de três meses a um ano. Na área cível, podem arcar com danos morais e materiais.


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