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Pacotes econômicos e suas contradições
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Os ajustes não foram feitos.
Vivíamos numa situação irreal.
Agora, é preciso encarar a necessidade de medidas duras. O
governo tem de cortar na própria carne. E fazer reformas estruturais. Caso contrário, teremos o caos. O pacote é péssimo.
Tudo vai piorar sem ele. Aumentar impostos é insuportável. Aumentar impostos é indispensável. Os juros altos são a
causa do déficit. O déficit é a
causa dos juros altos.
Ouço as mesmas frases há 15
anos pelo menos. Todos esses
raciocínios me parecem desgastados, perderam seu poder de
persuasão. Nem sequer parecem raciocínios, assemelham-se
a fórmulas litúrgicas, a rezas
que se repetem a cada auto-de-
fé.
Não digo que sejam inverídicos. É provável que tudo o que
se diz a favor e contra o novo
pacote seja correto; em economia, ao que parece, alternativas contraditórias não se excluem. Assim, tanto os juros altos podem causar o déficit
quanto o inverso; depende da
posição que se queira tomar no
debate, do ângulo com que se
encara um círculo vicioso.
De qualquer modo, sou inepto
para julgar o conteúdo das medidas econômicas adotadas e o
conteúdo das medidas que não
foram adotadas. Registro apenas o efeito dessas discussões
eternas. Ainda que possa haver
um lado mais certo do que o outro, e ainda que possa haver um
ou outro analista econômico
que sempre acerta em suas previsões e diagnósticos, é inevitável que o observador leigo reaja
com ceticismo a tudo o que se
diz, se promete e se critica.
Admito que não é um ceticismo "positivo", fundamentado,
bem-informado: é mais o ceticismo do tédio, do desgaste, da
poluição auditiva, o que tento
expressar aqui. Exploro um ou
dois aspectos de toda a falação.
Nada mais comum do que
prometer cortes nos gastos do
governo. Nada mais comum do
que constatar, de pacote em pacote, que esses cortes não foram
feitos. Nada mais comum do
que ver líderes empresariais dizendo que o governo "não fez a
sua parte". Nada mais comum
do que reclamar contra os desperdícios do setor público.
Perfeitamente. Não tenho nenhuma dúvida de que o governo gasta mal, que há desperdícios, empreguismos e mordomias inacreditáveis. Parece-me
claro, também, que há distorções na Previdência e que essas
distorções precisam ser corrigidas (já não tinham sido, aliás?)
antes que as contas estourem de
vez (se é que já não estouraram).
Faço, entretanto, o papel de
advogado do diabo. Espanta-
me, em primeiro lugar, o desperdício do setor privado também. Toda vez que vejo um hotel de luxo, um resort, com seu
centro de convenções, penso em
quantos eventos inúteis se realizaram ali. Workshops. Palestras. "House organs". Assessorias de imprensa. Brindes de final de ano. Salários de executivos. "Fringe benefits". Consultorias a preço de ouro.
Ninharias? Não tenho tanta
certeza. Há uma verdadeira indústria em torno dos chamados
"eventos". E quanto dinheiro
não se gasta no marketing e no
desenvolvimento de um "novo
produto" que apresenta apenas
modificações cosméticas em relação ao anterior? Claro, tudo
isso é ditado pela concorrência,
tudo isso significa mais dinamismo e crescimento econômico... Mas não é um crescimento
em falso, uma inutilidade, num
país como o Brasil?
Vejo os prédios da avenida
Berrini, verdadeiros palácios de
alumínio com catracas eletrônicas, átrios de mármore com
seguranças ganhando pouco,
"fashion malls", show-rooms de
design, "food stores" e não sei
mais o quê.
Outro dia li que uma lanchonete em São Paulo faz sanduíches com pão importado do
Chile. Em qualquer supermercado encontro água mineral
italiana. O país se encanta com
a banheirinha de hidromassagem da Sasha.
Pegue a revista "Caras". Depois de ver três páginas daquilo, aqueles personagens mostrando seu fitness center particular, seu guarda-roupa feito
em Milão, seu personal trainer,
não é ridículo, não é louco ouvir críticas aos desperdícios...
do governo? E muitos dos que
aparecem em "Caras" mostrando sua casa de campo são os
primeiros a declarar que um
aumento de impostos é insuportável! E que o governo tem
de cortar na própria carne!
Não falo apenas dos muito ricos, protegidos por um governo
que não cria impostos sobre as
grandes fortunas, sobre herança, nem arrecada para valer o
famoso imposto territorial rural. Penso também na classe
média, não só na classe média
alta, mas na média média e até
na média baixa.
A mesma pessoa que não poderia -eis um ponto pacífico- "suportar" um aumento
no imposto de renda não se importa de gastar fortunas no bufê infantil com o aniversário da
menininha de 1 ou 2 anos de
idade, que mal sabe o que está
acontecendo, mas está lá o animador da festinha, a luz negra,
a roupinha, o vídeo. E dali a algum tempo, a Disney. Depois, a
Disney de novo.
Enquanto isso, "sacrifícios se
impõem" no campo da merenda escolar, dos programas contra a dengue, nas obras contra
a seca. Estarei sendo demagógico? Tento sofisticar o raciocínio.
A falência do setor público
não é de hoje. Seus efeitos não
foram apenas o rombo orçamentário, os juros, a inflação
etc. Há outros efeitos, onipresentes no cotidiano.
A classe média passou a pagar
planos de saúde privados. Passou a gastar mais com segurança: grades, vigias, interfones. O
pai de família paga a escola
particular do filho. O curso de
inglês. O estacionamento. O segundo, o terceiro carro da casa.
O que são todas estas despesas
senão um imposto disfarçado?
Tudo isto é o preço que pagamos pela falência da escola pública, pela insegurança que deriva da má distribuição de renda, pela inexistência de hospitais públicos confiáveis, de uma
rede de transporte coletivo decente.
Cria-se então um círculo vicioso. Quanto mais falido o Estado, menos condições parece
haver de cobrar impostos e de
oferecer serviços razoáveis para
a classe média. E a classe média
pagará não só o plano de saúde
privado como também a propaganda do plano de saúde na televisão, o telemarketing do plano de saúde rival, as ofertas do
outro plano para novos clientes
etc... E viva a livre concorrência.
Numa sociedade desorganizada, só o "mercado", e não a
pressão política, responde pela
qualidade dos serviços prestados ao público. Numa sociedade desigual, o Estado se transforma no Grande Mendigo
quando se volta para os miseráveis, e no Grande Nababo
quando se volta para os investidores do mercado financeiro,
para os altos escalões administrativos, para as empreiteiras.
Não. Definitivamente, não
entendo nada de pacotes econômicos. Só sei que não costumam
dar certo. Mas o que não está
dando certo, no fundo, é a sociedade que temos.
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