São Paulo, quarta, 4 de novembro de 1998

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Pacotes econômicos e suas contradições

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Os ajustes não foram feitos. Vivíamos numa situação irreal. Agora, é preciso encarar a necessidade de medidas duras. O governo tem de cortar na própria carne. E fazer reformas estruturais. Caso contrário, teremos o caos. O pacote é péssimo. Tudo vai piorar sem ele. Aumentar impostos é insuportável. Aumentar impostos é indispensável. Os juros altos são a causa do déficit. O déficit é a causa dos juros altos.
Ouço as mesmas frases há 15 anos pelo menos. Todos esses raciocínios me parecem desgastados, perderam seu poder de persuasão. Nem sequer parecem raciocínios, assemelham-se a fórmulas litúrgicas, a rezas que se repetem a cada auto-de- fé.
Não digo que sejam inverídicos. É provável que tudo o que se diz a favor e contra o novo pacote seja correto; em economia, ao que parece, alternativas contraditórias não se excluem. Assim, tanto os juros altos podem causar o déficit quanto o inverso; depende da posição que se queira tomar no debate, do ângulo com que se encara um círculo vicioso.
De qualquer modo, sou inepto para julgar o conteúdo das medidas econômicas adotadas e o conteúdo das medidas que não foram adotadas. Registro apenas o efeito dessas discussões eternas. Ainda que possa haver um lado mais certo do que o outro, e ainda que possa haver um ou outro analista econômico que sempre acerta em suas previsões e diagnósticos, é inevitável que o observador leigo reaja com ceticismo a tudo o que se diz, se promete e se critica.
Admito que não é um ceticismo "positivo", fundamentado, bem-informado: é mais o ceticismo do tédio, do desgaste, da poluição auditiva, o que tento expressar aqui. Exploro um ou dois aspectos de toda a falação.
Nada mais comum do que prometer cortes nos gastos do governo. Nada mais comum do que constatar, de pacote em pacote, que esses cortes não foram feitos. Nada mais comum do que ver líderes empresariais dizendo que o governo "não fez a sua parte". Nada mais comum do que reclamar contra os desperdícios do setor público.
Perfeitamente. Não tenho nenhuma dúvida de que o governo gasta mal, que há desperdícios, empreguismos e mordomias inacreditáveis. Parece-me claro, também, que há distorções na Previdência e que essas distorções precisam ser corrigidas (já não tinham sido, aliás?) antes que as contas estourem de vez (se é que já não estouraram).
Faço, entretanto, o papel de advogado do diabo. Espanta- me, em primeiro lugar, o desperdício do setor privado também. Toda vez que vejo um hotel de luxo, um resort, com seu centro de convenções, penso em quantos eventos inúteis se realizaram ali. Workshops. Palestras. "House organs". Assessorias de imprensa. Brindes de final de ano. Salários de executivos. "Fringe benefits". Consultorias a preço de ouro.
Ninharias? Não tenho tanta certeza. Há uma verdadeira indústria em torno dos chamados "eventos". E quanto dinheiro não se gasta no marketing e no desenvolvimento de um "novo produto" que apresenta apenas modificações cosméticas em relação ao anterior? Claro, tudo isso é ditado pela concorrência, tudo isso significa mais dinamismo e crescimento econômico... Mas não é um crescimento em falso, uma inutilidade, num país como o Brasil?
Vejo os prédios da avenida Berrini, verdadeiros palácios de alumínio com catracas eletrônicas, átrios de mármore com seguranças ganhando pouco, "fashion malls", show-rooms de design, "food stores" e não sei mais o quê.
Outro dia li que uma lanchonete em São Paulo faz sanduíches com pão importado do Chile. Em qualquer supermercado encontro água mineral italiana. O país se encanta com a banheirinha de hidromassagem da Sasha.
Pegue a revista "Caras". Depois de ver três páginas daquilo, aqueles personagens mostrando seu fitness center particular, seu guarda-roupa feito em Milão, seu personal trainer, não é ridículo, não é louco ouvir críticas aos desperdícios... do governo? E muitos dos que aparecem em "Caras" mostrando sua casa de campo são os primeiros a declarar que um aumento de impostos é insuportável! E que o governo tem de cortar na própria carne!
Não falo apenas dos muito ricos, protegidos por um governo que não cria impostos sobre as grandes fortunas, sobre herança, nem arrecada para valer o famoso imposto territorial rural. Penso também na classe média, não só na classe média alta, mas na média média e até na média baixa.
A mesma pessoa que não poderia -eis um ponto pacífico- "suportar" um aumento no imposto de renda não se importa de gastar fortunas no bufê infantil com o aniversário da menininha de 1 ou 2 anos de idade, que mal sabe o que está acontecendo, mas está lá o animador da festinha, a luz negra, a roupinha, o vídeo. E dali a algum tempo, a Disney. Depois, a Disney de novo.
Enquanto isso, "sacrifícios se impõem" no campo da merenda escolar, dos programas contra a dengue, nas obras contra a seca. Estarei sendo demagógico? Tento sofisticar o raciocínio.
A falência do setor público não é de hoje. Seus efeitos não foram apenas o rombo orçamentário, os juros, a inflação etc. Há outros efeitos, onipresentes no cotidiano.
A classe média passou a pagar planos de saúde privados. Passou a gastar mais com segurança: grades, vigias, interfones. O pai de família paga a escola particular do filho. O curso de inglês. O estacionamento. O segundo, o terceiro carro da casa.
O que são todas estas despesas senão um imposto disfarçado? Tudo isto é o preço que pagamos pela falência da escola pública, pela insegurança que deriva da má distribuição de renda, pela inexistência de hospitais públicos confiáveis, de uma rede de transporte coletivo decente.
Cria-se então um círculo vicioso. Quanto mais falido o Estado, menos condições parece haver de cobrar impostos e de oferecer serviços razoáveis para a classe média. E a classe média pagará não só o plano de saúde privado como também a propaganda do plano de saúde na televisão, o telemarketing do plano de saúde rival, as ofertas do outro plano para novos clientes etc... E viva a livre concorrência.
Numa sociedade desorganizada, só o "mercado", e não a pressão política, responde pela qualidade dos serviços prestados ao público. Numa sociedade desigual, o Estado se transforma no Grande Mendigo quando se volta para os miseráveis, e no Grande Nababo quando se volta para os investidores do mercado financeiro, para os altos escalões administrativos, para as empreiteiras.
Não. Definitivamente, não entendo nada de pacotes econômicos. Só sei que não costumam dar certo. Mas o que não está dando certo, no fundo, é a sociedade que temos.



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