São Paulo, quarta-feira, 04 de dezembro de 2002

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MARCELO COELHO

É isso aí, companheiro

Os mercados, como se sabe, andaram muito "voláteis". Mas vai ver que a frase está desatualizada, e que, em vez de "voláteis" (ou será "volúveis"?), os mercados (ou será "o mercado"?) já se estabilizaram; não sei.
Demoro um pouco para me acostumar com as coisas. Há poucos meses, "o mercado" achava que, se Lula fosse eleito, teríamos a explosão do dólar, o caos econômico, a argentinização, o calote. O PT ganhou a eleição, e nada de mais grave aconteceu. Ou melhor, muita coisa grave aconteceu, como sempre, mas o clima entre investidores e agentes financeiros parece ser de confiança ou, quem sabe, de entusiasmo.
Acho até que, se ressuscitassem Roberto Campos ou Mário Henrique Simonsen, e Lula dissesse que iria nomeá-los para o ministério, o mercado talvez ficasse descontente, deixando vazar que o melhor nome para a Fazenda é mesmo o de Antônio Palocci.
É notável o esforço de Lula e sua equipe no sentido de dissipar as expectativas pessimistas do mercado, e as declarações de Palocci têm sido habilíssimas até agora.
Parece ter ficado claro que o novo governo está empenhado em "respeitar contratos", em não "quebrar a confiança dos investidores", em "manter os compromissos já assumidos" etc. -fraseologia que, em resumo, significa: "não vai haver calote".
Perfeito. Não temos calote, temos Palocci: o que não é a mais perfeita das rimas, mas pode bem ser uma solução.
Havia só um empecilho para ele integrar o ministério de Lula, e já foi superado: é que, há uns dois anos, mais ou menos, Palocci havia feito uma declaração, registrada em cartório, comprometendo-se a ficar até o final de seu mandato na Prefeitura de Ribeirão Preto.
Desconheço o teor exato da declaração. De qualquer modo, dizem-me que não tinha valor legal e que não tem mais nenhuma importância. Deve ter tido, na época, para que Palocci tenha até ido a um cartório registrá-la, mas agora não tem mais, a realidade é outra.
Então é isso. O episódio é bastante curioso. A pessoa oficialmente empenhada em respeitar os contratos, em não quebrar as regras estabelecidas, em seguir à risca os compromissos firmados etc. só pode ascender ao ministério rompendo com um compromisso, desrespeitando o que firmara, quebrando a regra que estabelecera.
Todo mundo se cansou de ironizar Fernando Henrique pela suposta frase "esqueçam o que eu escrevi". Ele poderia agora dizer: "Escrevi, mas não registrei em cartório". Estamos evoluindo rapidamente nessa área.
Seria um pouco ridículo demonstrar espanto diante da atitude de Palocci, que pertence à rotina clássica das coisas políticas. O engraçado é que, quando FHC começou a demonstrar certas obviedades -que o poder é o poder, que uma coisa é estar na oposição, outra é estar no governo, que não é para esperar coerência de ninguém, que falar em princípios é ser "principista" e coisas desse gênero-, muita gente achou certo, muita gente achou errado, mas ninguém se encantou com aquilo a que estava assistindo.
Agora, o pragmatismo petista suscita embevecimento, taquicardia e lágrimas. Os escrúpulos, na era FHC, eram abandonados racionalmente, com frieza e largas doses de arrogância; na era Lula, o tom é mais de sentimentalismo, emoção e humildade cristã.
Claro que nunca se ligou muito para "contratos", "regras instituídas", "compromissos estabelecidos". Em tese, o cálculo do salário mínimo obedece a regras tão precisas quanto as que regem o mercado financeiro, mas a disposição das autoridades para o rigor tende a variar muito num e noutro caso.
Do famoso sumiço dos 13% no índice do custo de vida, nos tempos em que Delfim Netto era ministro, até o polêmico rompimento do acordo com os petroleiros logo nos primeiros dias do governo FHC -foi isso mesmo? não me lembro-, as autoridades econômicas sempre souberam que algumas regras foram feitas para serem seguidas e outras foram feitas para serem jogadas no lixo.
E o movimento sindical procurava garantir que as "suas" regras não fossem jogadas no lixo. Tema ultrapassado, ao que tudo indica. Em discurso histórico aos sindicalistas, o presidente eleito afirmou, entre outras coisas, que, "como parte organizada da sociedade, os sindicatos terão de organizar a outra parte, porque isso é mais revolucionário do que pedir 5% de aumento"; que há 50 milhões de pessoas passando fome no país e que essa é a grande discussão do momento, e "não ficar debatendo se o salário mínimo deve ser de R$ 210, R$ 211 ou R$ 240".
Lula poderia ter dito frase semelhante a respeito da taxa de juros ou do superávit primário numa reunião com banqueiros ou com representantes do FMI. Mas não disse, porque não é louco e porque sindicalistas não são banqueiros.
Para voltar a Palocci. Talvez não haja nenhuma ironia no episódio do cartório. O que torna qualquer autoridade confiável não são as frases sobre os compromissos que irá seguir, mas, sim, os atos comprovando os compromissos que está disposto a romper.
Poderia ser de outro modo? Sim, se tudo tivesse sido diferente. Na circunstância atual, um ou outro xiita, um ou outro "irresponsável" haverá de perguntar: "O que é isso, companheiro?". Ao que os futuros membros do governo responderão: "Ora, companheiro, é isso aí".


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