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MARCELO COELHO
É isso aí, companheiro
Os mercados, como se sabe, andaram muito "voláteis". Mas vai ver que a frase está desatualizada, e que, em vez de
"voláteis" (ou será "volúveis"?),
os mercados (ou será "o mercado"?) já se estabilizaram; não sei.
Demoro um pouco para me
acostumar com as coisas. Há poucos meses, "o mercado" achava
que, se Lula fosse eleito, teríamos
a explosão do dólar, o caos econômico, a argentinização, o calote.
O PT ganhou a eleição, e nada de
mais grave aconteceu. Ou melhor,
muita coisa grave aconteceu, como sempre, mas o clima entre investidores e agentes financeiros
parece ser de confiança ou, quem
sabe, de entusiasmo.
Acho até que, se ressuscitassem
Roberto Campos ou Mário Henrique Simonsen, e Lula dissesse que
iria nomeá-los para o ministério,
o mercado talvez ficasse descontente, deixando vazar que o melhor nome para a Fazenda é mesmo o de Antônio Palocci.
É notável o esforço de Lula e sua
equipe no sentido de dissipar as
expectativas pessimistas do mercado, e as declarações de Palocci
têm sido habilíssimas até agora.
Parece ter ficado claro que o novo governo está empenhado em
"respeitar contratos", em não
"quebrar a confiança dos investidores", em "manter os compromissos já assumidos" etc. -fraseologia que, em resumo, significa: "não vai haver calote".
Perfeito. Não temos calote, temos Palocci: o que não é a mais
perfeita das rimas, mas pode bem
ser uma solução.
Havia só um empecilho para ele
integrar o ministério de Lula, e já
foi superado: é que, há uns dois
anos, mais ou menos, Palocci havia feito uma declaração, registrada em cartório, comprometendo-se a ficar até o final de seu
mandato na Prefeitura de Ribeirão Preto.
Desconheço o teor exato da declaração. De qualquer modo, dizem-me que não tinha valor legal
e que não tem mais nenhuma importância. Deve ter tido, na época, para que Palocci tenha até ido
a um cartório registrá-la, mas
agora não tem mais, a realidade é
outra.
Então é isso. O episódio é bastante curioso. A pessoa oficialmente empenhada em respeitar
os contratos, em não quebrar as
regras estabelecidas, em seguir à
risca os compromissos firmados
etc. só pode ascender ao ministério rompendo com um compromisso, desrespeitando o que firmara, quebrando a regra que estabelecera.
Todo mundo se cansou de ironizar Fernando Henrique pela suposta frase "esqueçam o que eu
escrevi". Ele poderia agora dizer:
"Escrevi, mas não registrei em
cartório". Estamos evoluindo rapidamente nessa área.
Seria um pouco ridículo demonstrar espanto diante da atitude de Palocci, que pertence à rotina clássica das coisas políticas.
O engraçado é que, quando FHC
começou a demonstrar certas obviedades -que o poder é o poder,
que uma coisa é estar na oposição, outra é estar no governo, que
não é para esperar coerência de
ninguém, que falar em princípios
é ser "principista" e coisas desse
gênero-, muita gente achou certo, muita gente achou errado,
mas ninguém se encantou com
aquilo a que estava assistindo.
Agora, o pragmatismo petista
suscita embevecimento, taquicardia e lágrimas. Os escrúpulos, na
era FHC, eram abandonados racionalmente, com frieza e largas
doses de arrogância; na era Lula,
o tom é mais de sentimentalismo,
emoção e humildade cristã.
Claro que nunca se ligou muito
para "contratos", "regras instituídas", "compromissos estabelecidos". Em tese, o cálculo do salário
mínimo obedece a regras tão precisas quanto as que regem o mercado financeiro, mas a disposição
das autoridades para o rigor tende a variar muito num e noutro
caso.
Do famoso sumiço dos 13% no
índice do custo de vida, nos tempos em que Delfim Netto era ministro, até o polêmico rompimento do acordo com os petroleiros
logo nos primeiros dias do governo FHC -foi isso mesmo? não
me lembro-, as autoridades econômicas sempre souberam que
algumas regras foram feitas para
serem seguidas e outras foram feitas para serem jogadas no lixo.
E o movimento sindical procurava garantir que as "suas" regras não fossem jogadas no lixo.
Tema ultrapassado, ao que tudo
indica. Em discurso histórico aos
sindicalistas, o presidente eleito
afirmou, entre outras coisas, que,
"como parte organizada da sociedade, os sindicatos terão de organizar a outra parte, porque isso é
mais revolucionário do que pedir
5% de aumento"; que há 50 milhões de pessoas passando fome
no país e que essa é a grande discussão do momento, e "não ficar
debatendo se o salário mínimo
deve ser de R$ 210, R$ 211 ou R$
240".
Lula poderia ter dito frase semelhante a respeito da taxa de juros ou do superávit primário numa reunião com banqueiros ou
com representantes do FMI. Mas
não disse, porque não é louco e
porque sindicalistas não são banqueiros.
Para voltar a Palocci. Talvez
não haja nenhuma ironia no episódio do cartório. O que torna
qualquer autoridade confiável
não são as frases sobre os compromissos que irá seguir, mas, sim, os
atos comprovando os compromissos que está disposto a romper.
Poderia ser de outro modo?
Sim, se tudo tivesse sido diferente.
Na circunstância atual, um ou
outro xiita, um ou outro "irresponsável" haverá de perguntar:
"O que é isso, companheiro?". Ao
que os futuros membros do governo responderão: "Ora, companheiro, é isso aí".
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