São Paulo, terça-feira, 04 de dezembro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Exilado na própria língua

O estrangeiro é incorporado à língua hegemônica como sotaque, como cor local

"ENSAIOS de Literatura Ocidental" (Duas Cidades/Editora 34), de Erich Auerbach, termina com uma citação sensacional: "Delicado é aquele para quem a pátria é doce. Bravo, aquele para quem a pátria é tudo. Mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é exílio..." (Hugo de São Vítor, "Didascalicon, III, 20").
Auerbach estava falando, em 1952, da possibilidade de uma compreensão sintética de todo o universo da literatura mundial, a partir de um ponto de vista humanista, para além dos limites nacionais, mas podia estar se referindo também à própria produção literária. São extraordinários os escritores que vivem o mundo como exílio, a começar pela própria pátria -e grandes exemplos não faltam ao século 20: Kafka, Beckett, Bernhard etc.
O número 1 da revista "Granta" (ed. Alfaguara), em português, dedicado aos "melhores jovens escritores norte-americanos", revela a tendência oposta. Os jovens escritores americanos, sem desmerecer o talento de cada um, podem ter o mundo inteiro nas veias (em conjunto, representam o propalado "melting pot": são brancos, negros, judeus, latinos, asiáticos, descendentes de russos, de africanos, de latino-americanos, de tailandeses, de indianos e de chineses) mas escrevem todos na língua da nação hegemônica.
É essa a principal armadilha do multiculturalismo anglo-saxão: o mundo (as outras línguas e a respectiva diversidade cultural e literária) deixa de existir fora das fronteiras da pátria, já que o estrangeiro é incorporado à língua hegemônica (e ao mercado que ela representa) como sotaque, como cor local e exotismo, enriquecendo-a na superfície, ao mesmo tempo que dispensa tudo o que lhe for exterior. Assim, a pátria não pode ser exílio; ela é sempre lar. A qualidade, quando é interior, passa a ser norma; e, quando é exterior, passa a ser exceção.
Não é por acaso que as traduções de ficção estrangeira nos Estados Unidos representem uma fatia tão insignificante do mercado. No multiculturalismo, há limites para a diferença, a começar pela língua. E, no caso da literatura, essa é uma diferença fundamental.
Há dez anos, durante uma série de leituras promovida em conjunto por uma das oficinas literárias mais prestigiosas dos Estados Unidos (da qual então participava uma das escritoras agora selecionadas pela "Granta") e pelo programa de residência de escritores estrangeiros na mesma universidade (do qual eu participava), jovens americanos, alunos da concorrida oficina literária, rolavam de rir diante de uma jovem africana que lia constrangida um conto (folclórico e sofrível, segundo os padrões literários ocidentais) com um sotaque carregado. A perversão, no caso, era que a presença da jovem africana naquele fórum correspondia perfeitamente à imagem que o multiculturalismo paternalista faz de uma jovem escritora da África negra (seria muito diferente se ela fosse americana, descendente de africanos nos EUA).
O que a hegemonia do mercado literário anglo-saxão não pode conceber, até por razões protecionistas e de imposição de um modelo de excelência mundial, é que outras línguas criem parâmetros literários diferentes e até contraditórios em relação ao consenso americano ou inglês. E que esses outros modelos não se reduzam ao relato singelo de realidades exóticas.
Há alguns meses, um escritor inglês me perguntou se eu achava Borges realmente importante (dando a entender que o argentino não se sustentaria em pé segundo os critérios do romance realista, à moda inglesa, com personagens psicologicamente verossímeis e bem construídos, como ele próprio praticava). Com a transformação do livro em produto de massa e o advento de grandes corporações editoriais a partir dos anos 80, a literatura passou a ser tratada também como ferramenta de conquista e dominação cultural, de par com o cinema. Como arte é subjetividade, o mercado precisa estabelecer um princípio objetivo que justifique a naturalidade da sua política cultural. E esse princípio só pode ser o da maior facilidade (romances realistas ou baseados em histórias reais, com personagens psicologicamente verossímeis e bem construídos). Qualquer desvio passa a ser qualificado pejorativamente de "experimental" ou "cerebral".
Os melhores jovens escritores americanos ou ingleses podem ser "delicados" ou "bravos" mas, a julgar pela máxima de Hugo de São Vítor, não serão "perfeitos" (ou completos) enquanto não relativizarem o seu lugar no mundo e se sentirem exilados também em sua própria língua.


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