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BERNARDO CARVALHO
Exilado na própria língua
O estrangeiro é incorporado à língua hegemônica como sotaque, como cor local
"ENSAIOS de Literatura Ocidental" (Duas Cidades/Editora 34), de Erich
Auerbach, termina com uma citação
sensacional: "Delicado é aquele para
quem a pátria é doce. Bravo, aquele
para quem a pátria é tudo. Mas perfeito é aquele para quem o mundo
inteiro é exílio..." (Hugo de São Vítor, "Didascalicon, III, 20").
Auerbach estava falando, em 1952,
da possibilidade de uma compreensão sintética de todo o universo da literatura mundial, a partir de um
ponto de vista humanista, para além
dos limites nacionais, mas podia estar se referindo também à própria
produção literária. São extraordinários os escritores que vivem o mundo como exílio, a começar pela própria pátria -e grandes exemplos
não faltam ao século 20: Kafka, Beckett, Bernhard etc.
O número 1 da revista "Granta"
(ed. Alfaguara), em português, dedicado aos "melhores jovens escritores norte-americanos", revela a tendência oposta. Os jovens escritores
americanos, sem desmerecer o talento de cada um, podem ter o mundo inteiro nas veias (em conjunto,
representam o propalado "melting
pot": são brancos, negros, judeus, latinos, asiáticos, descendentes de
russos, de africanos, de latino-americanos, de tailandeses, de indianos
e de chineses) mas escrevem todos
na língua da nação hegemônica.
É essa a principal armadilha do
multiculturalismo anglo-saxão: o
mundo (as outras línguas e a respectiva diversidade cultural e literária)
deixa de existir fora das fronteiras
da pátria, já que o estrangeiro é incorporado à língua hegemônica (e
ao mercado que ela representa) como sotaque, como cor local e exotismo, enriquecendo-a na superfície,
ao mesmo tempo que dispensa tudo
o que lhe for exterior. Assim, a pátria
não pode ser exílio; ela é sempre lar.
A qualidade, quando é interior, passa a ser norma; e, quando é exterior,
passa a ser exceção.
Não é por acaso que as traduções
de ficção estrangeira nos Estados
Unidos representem uma fatia tão
insignificante do mercado. No multiculturalismo, há limites para a diferença, a começar pela língua. E, no
caso da literatura, essa é uma diferença fundamental.
Há dez anos, durante uma série de
leituras promovida em conjunto por
uma das oficinas literárias mais
prestigiosas dos Estados Unidos (da
qual então participava uma das escritoras agora selecionadas pela
"Granta") e pelo programa de residência de escritores estrangeiros na
mesma universidade (do qual eu
participava), jovens americanos,
alunos da concorrida oficina literária, rolavam de rir diante de uma jovem africana que lia constrangida
um conto (folclórico e sofrível, segundo os padrões literários ocidentais) com um sotaque carregado. A
perversão, no caso, era que a presença da jovem africana naquele fórum
correspondia perfeitamente à imagem que o multiculturalismo paternalista faz de uma jovem escritora
da África negra (seria muito diferente se ela fosse americana, descendente de africanos nos EUA).
O que a hegemonia do mercado literário anglo-saxão não pode conceber, até por razões protecionistas e
de imposição de um modelo de excelência mundial, é que outras línguas criem parâmetros literários diferentes e até contraditórios em relação ao consenso americano ou inglês. E que esses outros modelos não
se reduzam ao relato singelo de realidades exóticas.
Há alguns meses, um escritor inglês me perguntou se eu achava Borges realmente importante (dando a
entender que o argentino não se sustentaria em pé segundo os critérios
do romance realista, à moda inglesa,
com personagens psicologicamente
verossímeis e bem construídos, como ele próprio praticava). Com a
transformação do livro em produto
de massa e o advento de grandes
corporações editoriais a partir dos
anos 80, a literatura passou a ser tratada também como ferramenta de
conquista e dominação cultural, de
par com o cinema. Como arte é subjetividade, o mercado precisa estabelecer um princípio objetivo que
justifique a naturalidade da sua política cultural. E esse princípio só pode ser o da maior facilidade (romances realistas ou baseados em histórias reais, com personagens psicologicamente verossímeis e bem construídos). Qualquer desvio passa a ser
qualificado pejorativamente de "experimental" ou "cerebral".
Os melhores jovens escritores
americanos ou ingleses podem ser
"delicados" ou "bravos" mas, a julgar
pela máxima de Hugo de São Vítor,
não serão "perfeitos" (ou completos) enquanto não relativizarem o
seu lugar no mundo e se sentirem
exilados também em sua própria
língua.
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