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RESENHA DA SEMANA
Autonomia de um conto
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Para além das vaidades e
mesquinharias pessoais, é
possível ver a literatura como
uma espécie de empreendimento coletivo, um conjunto de tentativas individuais e aparentemente isoladas de alcançar algo
que não se sabe bem o que é e de
dizer o que não se conhece.
Quanto mais tentativas houver, maiores as chances de acerto. E, se os acertos são raros,
também são poucos os que têm
discernimento para reconhecê-los, no caso de críticos e leitores,
ou consciência do que estão fazendo, no caso dos escritores.
É incrível, por exemplo, pensar que alguém possa não ver diferença entre Beckett e Paulo
Coelho, embora a falta de discernimento não seja menos espantosa e grave nos equívocos
de avaliação entre os diversos
matizes que existem entre um
extremo e outro.
Quanto mais iniciativas literárias houver, maiores as chances
de se compreender todas as dimensões e consequências dessas
diferenças. A literatura depende
dos parâmetros criados pela formação de um meio e de um repertório literário.
A editora Livros do Mal, recém-criada por um grupo de jovens de Porto Alegre, é uma pequena contribuição, entre outras, para renovar o meio e o repertório literário brasileiro. São
autores que começaram a publicar seus textos ainda muito cedo, na internet, como alternativa e exercício. Os dois primeiros
livros da editora, lançados no final do ano passado, tem tanto
de uma coisa como de outra.
"Ovelhas que Voam se Perdem no Céu", de Daniel Pellizzari, e "Dentes Guardados", de
Daniel Galera, são alternativos
como iniciativa editorial e muitas vezes podem parecer exercícios de juventude do ponto de
vista da literatura. Mas ambos
estão investidos de uma noção
literária básica para quem escreve contos hoje, depois de Tchecov, Joyce e Kafka.
De uma maneira mais ou menos bem-sucedida, os dois não
procuram explicar o sentido das
coisas e não fecham seus contos
com uma moral. Para além do
que se passa fora dos livros (na
militância editorial), porém, um
tem pouco a ver com o outro.
Em Pellizzari, 27, dois contos
se destacam: "O Vôo das Ovelhas", cuja epígrafe de Fernando
Pessoa indica ao leitor o tipo de
literatura que o autor mais preza
("as coisas não têm significação;
têm existência/ As coisas são o
único sentido oculto das coisas"), e em especial o curto
"Ponto de Fuga", provavelmente o texto mais acabado e preciso
do livro (por ser, no seu tipo de
humor, literalmente redondo).
Em Daniel Galera, 22, há contos bons. "Os Mortos de Marquês de Sade", em particular,
graças ao humor discreto ao
narrar a visita de um grupo de
jovens a um vilarejo gaúcho
chamado Marquês de Sade, onde os adultos se comunicam
"exclusivamente em alemão" e
de onde os visitantes tentam trazer para casa, como lembranças,
as lápides do cemitério.
Há outros interessantes: "Subconsciente", "Amor Perfeito",
"A Escrava Branca", "Manual
para Atropelar Cachorros" e
"Dafne Adormecida". E há um
excepcional. Chama-se "Triângulo" e a sua qualidade talvez
possa ser apreendida pelo fato
de não se poder dizer nada (ou
quase nada) sobre esse conto
sem comprometê-lo ou estragá-lo. É um texto cuja autonomia é
a sua condição. E isso é fundamental em literatura.
Dá para dizer que "Triângulo"
joga de uma forma traiçoeira
com as pretensas identidades
sexuais, com a relatividade dos
desejos e dos objetos do desejo.
Mas é pouco para defini-lo. O fato é que, ao pôr em questão as
identidades sexuais, Galera ironiza por tabela o clichê da escrita
de macho, aquela que se pretende mais autêntica por ser feita de
suor e sangue.
O autor se serve do estilo que
pretende chegar mais perto da
realidade ao falar duro -quando na verdade apenas mimetiza
um maneirismo embrutecido e
violento, que não é nem mais
nem menos artificioso do que
qualquer outro estilo que se decida usar para impor uma identidade- para confrontá-lo consigo mesmo.
A graça de "Triângulo" é a relatividade que esse confronto revela. E a surpresa de um escritor
estreante com consciência dos
poderes subjetivos da literatura.
Dentes Guardados
Autor: Daniel Galera
Editora: Livros do Mal
Quanto: R$ 10 (88 págs.)
Ovelhas que Voam se Perdem
no Céu
Autor: Daniel Pellizzari
Editora: Livros do Mal
Quanto: R$ 10 (88 págs.)
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