São Paulo, quinta-feira, 05 de janeiro de 2006

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Diretor de fotografia Christopher Doyle, principal parceiro artístico do cineasta chinês, fala à Folha sobre "2046 - Os Segredos do Amor", que estréia amanhã

O olho mágico de Kar-wai

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para Wong Kar-wai, o amor é uma ilusão de ótica. Em filmes como "2046 - Os Segredos do Amor", que estréia amanhã, o cineasta constrói labirintos onde os amantes se perdem e não mais se encontram. É um mundo habitado por seres solitários, casais famintos pela consumação do desejo, mas que sempre são frustrados pelos descaminhos do acaso.
O chinês Kar-wai, no entanto, só conseguiu erguer as sólidas paredes destes labirintos porque teve a mão e o olhar do diretor de fotografia australiano Christopher Doyle. Se suas produções são, antes de mais nada, filmes-fetiche, é Doyle o grande responsável pela concepção visual que virou marca registrada do cineasta: uma estética de vermelhos intensos que evoca sensações de saudosismo, um universo confinado, melancólico e de eternos retornos, que se move entre imagens distorcidas em câmera lenta e velocidades alteradas. O clichê diz que o cinema oriental de hoje tem imagens exuberantes e belas? Coisas de Doyle, que ajudou a definir o que atualmente se entende como a cara deste cinema, vide o colorido "Herói" (2002), de Zhang Yimou, filme no qual também criou a concepção visual.
"2046" é o sétimo longa em que a dupla trabalha em simbiose e o primeiro em que a parceria começou a entrar em atritos. Ao mesmo tempo em que o filme marca o ápice da exuberância de recursos visuais de Doyle -há até flertes com o universo da ficção científica-, "2046" gera críticas do próprio diretor de fotografia.
Mas esta é uma relação complexa. Num casamento artístico estruturado pela busca da perfeição, Kar-wai e Doyle têm ritmos opostos. O primeiro é lento -levou cinco anos para concluir "2046"-; o segundo tem pressa, quer acabar logo um projeto e partir para outro (na China, Doyle adota outro nome: Du Ke Feng, algo como "igual ao vento").

Tempo próprio
"Depois de "Gerry", [o diretor americano] Gus Van Sant fez "Elefante" e encontrou a voz perfeita para a viagem em que estava. Uma vez que você chega ao seu destino, o melhor a fazer é sair do trem", diz Christopher Doyle, 53, em entrevista por e-mail à Folha. "Com Kar-wai, senti que havia idéias que nós já havíamos celebrado e tocado em nossos outros filmes. "2046" parece, para mim, um dicionário de tudo que já tínhamos feito antes."
Mas Doyle não é deselegante a ponto de sair falando mal de seu parceiro de anos. "Kar-wai tem que achar o filme, e não apenas fazê-lo. A maioria das pessoas nem encontram a si mesmas. Isso leva tempo", pondera o australiano, sobre o peculiar ritmo do chinês.
Mas ele prefere, em vez disso, falar sobre seu processo criativo, que pouco tem a ver com noções aprendidas em escolas. "Os aspectos técnicos de uma filmagem qualquer um pode aprender em poucos meses", diz Doyle, que também já se aventurou na direção em "Away with Words" (1999). Para ele, importam os aspectos subjetivos. "As formas mais elevadas são dança e música. Um corpo no espaço é um poema; um som em corações alheios é para sempre. Seguro a câmera para dançar com os atores, para dá-los o maior espaço possível para serem quem eles precisam ser e para estar tão perto deles como se fosse dar um beijo. Então você (o público), pode ser beijado também."
Com Kar-wai -presidente do júri em Cannes neste ano-, divide um olhar que exalta a figura feminina. Atualmente trabalhando em um dos 20 episódios do filme conjunto "Paris Je t'Aime" -ao lado de Walter Salles, Gus Van Sant etc.-, Doyle diz: "Precisamos de mais mulheres em papéis importantes no cinema, então estou tentando fazer com que alguma mulher filme comigo."
Enquanto Kar-wai tece suas tramas de colisões amorosas, Doyle encena, na sua própria vida, uma improvável biografia de desencontros e encontros. Precisou, por exemplo, sair da Austrália aos 18 anos e rodar o mundo para encontrar sua real identidade e vocação no Oriente.

Visões do mundo
"Tédio, drogas e a necessidade de conhecer mais. Basicamente a vida que a literatura de gente como Cortázar ou Bukowski insinuava que estava lá fora me esperando", diz Doyle, sobre o que o levou à vida de aventureiro. "A maioria das pessoas na época, eu incluído, me via como dono de uma juventude desperdiçada, sem rumo. Hoje vejo que aquele foi o período mais relevante de minha vida para o que sou. Antes, eu tinha tempo para ver e escutar; agora, estou sempre ocupado."
Ou seja, Doyle viu muitas coisas e embarcou de cabeça numa vida sem limites, como se fosse um personagem de filme. Foi escavador de poço na Índia, praticou medicina chinesa na Tailândia, além de paradas em Israel e três anos em um navio norueguês.
Diz que seu fascínio pelo Oriente e pelo cinema aconteceram por acidente. "Queria aprender uma língua, e calhou de ser o chinês. Tinha bastante tempo livre quando era estudante, e alguém pôs uma câmera na minha mão. O espanto tanto em relação ao que a língua me permitiu falar e dividir, e negociar o espaço entre as maneiras como eu e a câmera vemos, são o porquê daquilo que sou."
Sua identificação e conexão com a Ásia são tantas que ele diz "nós" quando se refere aos orientais. "A Ásia está num embalo econômico e social, e isso sinaliza a energia do que nós dizemos. Agora temos uma voz e muitas coisas para compartilhar. O Ocidente está num modelo oposto. Eles [os ocidentais] acreditam em uma fórmula. Eles categorizam. Eles tentam explicar as coisas em vez de descobri-las. Eles falam antes de olhar." Não tente entender. Assistir à poesia visual dos filmes de Kar-wai e Doyle ultrapassa qualquer entendimento.


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