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Diretor de fotografia Christopher Doyle, principal parceiro artístico do cineasta chinês, fala à Folha sobre "2046 - Os Segredos do Amor", que estréia amanhã
O olho mágico de Kar-wai
BRUNO YUTAKA SAITO
DA REPORTAGEM LOCAL
Para Wong Kar-wai, o amor é
uma ilusão de ótica. Em filmes como "2046 - Os Segredos do
Amor", que estréia amanhã, o cineasta constrói labirintos onde os
amantes se perdem e não mais se
encontram. É um mundo habitado por seres solitários, casais famintos pela consumação do desejo, mas que sempre são frustrados
pelos descaminhos do acaso.
O chinês Kar-wai, no entanto,
só conseguiu erguer as sólidas paredes destes labirintos porque teve a mão e o olhar do diretor de
fotografia australiano Christopher Doyle. Se suas produções
são, antes de mais nada, filmes-fetiche, é Doyle o grande responsável pela concepção visual que virou marca registrada do cineasta:
uma estética de vermelhos intensos que evoca sensações de saudosismo, um universo confinado,
melancólico e de eternos retornos, que se move entre imagens
distorcidas em câmera lenta e velocidades alteradas. O
clichê diz que o cinema oriental de hoje
tem imagens exuberantes e belas? Coisas de Doyle,
que ajudou a definir o que atualmente se entende como a cara
deste cinema, vide o colorido
"Herói" (2002), de Zhang Yimou,
filme no qual também criou a
concepção visual.
"2046" é o sétimo longa em que
a dupla trabalha em simbiose e o
primeiro em que a parceria começou a entrar em atritos. Ao mesmo tempo em que o filme marca o
ápice da exuberância de recursos
visuais de Doyle -há até flertes
com o universo da ficção científica-, "2046" gera críticas do próprio diretor de fotografia.
Mas esta é uma relação complexa. Num casamento artístico estruturado pela busca da perfeição,
Kar-wai e Doyle têm ritmos opostos. O primeiro é lento -levou
cinco anos para concluir
"2046"-; o segundo tem pressa,
quer acabar logo um projeto e
partir para outro (na China, Doyle adota outro nome: Du Ke Feng,
algo como "igual ao vento").
Tempo próprio
"Depois de "Gerry", [o diretor
americano] Gus Van Sant fez "Elefante" e encontrou a voz perfeita
para a viagem em que estava.
Uma vez que você chega ao seu
destino, o melhor a fazer é sair do
trem", diz Christopher Doyle, 53,
em entrevista por e-mail à Folha.
"Com Kar-wai, senti que havia
idéias que nós já havíamos celebrado e tocado em nossos outros
filmes. "2046" parece, para mim,
um dicionário de tudo que já tínhamos feito antes."
Mas Doyle não é deselegante a
ponto de sair falando mal de seu
parceiro de anos. "Kar-wai tem
que achar o filme, e não apenas fazê-lo. A maioria das pessoas nem
encontram a si mesmas. Isso leva
tempo", pondera o australiano,
sobre o peculiar ritmo do chinês.
Mas ele prefere, em vez disso,
falar sobre seu processo criativo,
que pouco tem a ver com noções
aprendidas em escolas. "Os aspectos técnicos de uma filmagem
qualquer um pode aprender em
poucos meses", diz Doyle, que
também já se aventurou na direção em "Away with Words"
(1999). Para ele, importam os aspectos subjetivos. "As formas
mais elevadas são dança e música.
Um corpo no espaço é um poema;
um som em corações alheios é para sempre. Seguro a câmera para
dançar com os atores, para dá-los
o maior espaço possível para serem quem eles precisam ser e para
estar tão perto deles como se fosse
dar um beijo. Então você (o público), pode ser beijado também."
Com Kar-wai -presidente do
júri em Cannes neste ano-, divide um olhar que exalta a figura feminina. Atualmente trabalhando
em um dos 20 episódios do filme
conjunto "Paris Je t'Aime" -ao
lado de Walter Salles, Gus Van
Sant etc.-, Doyle diz: "Precisamos de mais mulheres em papéis
importantes no cinema, então estou tentando fazer com que alguma mulher filme comigo."
Enquanto Kar-wai tece suas tramas de colisões amorosas, Doyle
encena, na sua própria vida, uma
improvável biografia de desencontros e encontros. Precisou,
por exemplo, sair da Austrália aos
18 anos e rodar o mundo para encontrar sua real identidade e vocação no Oriente.
Visões do mundo
"Tédio, drogas e a necessidade
de conhecer mais. Basicamente a
vida que a literatura de gente como Cortázar ou Bukowski insinuava que estava lá fora me esperando", diz Doyle, sobre o que o
levou à vida de aventureiro. "A
maioria das pessoas na época, eu
incluído, me via como dono de
uma juventude desperdiçada,
sem rumo. Hoje vejo que aquele
foi o período mais relevante de
minha vida para o que sou. Antes,
eu tinha tempo para ver e escutar;
agora, estou sempre ocupado."
Ou seja, Doyle viu muitas coisas
e embarcou de cabeça numa vida
sem limites, como se fosse um
personagem de filme. Foi escavador de poço na Índia, praticou
medicina chinesa na Tailândia,
além de paradas em Israel e três
anos em um navio norueguês.
Diz que seu fascínio pelo Oriente e pelo cinema aconteceram por
acidente. "Queria aprender uma
língua, e calhou de ser o chinês.
Tinha bastante tempo livre quando era estudante, e alguém pôs
uma câmera na minha mão. O espanto tanto em relação ao que a
língua me permitiu falar e dividir,
e negociar o espaço entre as maneiras como eu e a câmera vemos,
são o porquê daquilo que sou."
Sua identificação e conexão
com a Ásia são tantas que ele diz
"nós" quando se refere aos orientais. "A Ásia está num embalo
econômico e social, e isso sinaliza
a energia do que nós dizemos.
Agora temos uma voz e muitas
coisas para compartilhar. O Ocidente está num modelo oposto.
Eles [os ocidentais] acreditam em
uma fórmula. Eles categorizam.
Eles tentam explicar as coisas em
vez de descobri-las. Eles falam antes de olhar." Não tente entender.
Assistir à poesia visual dos filmes
de Kar-wai e Doyle ultrapassa
qualquer entendimento.
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