São Paulo, sexta-feira, 05 de janeiro de 2007

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Cinema - Crítica/"Dias Selvagens"

Estréia a "pedra fundamental" de Kar-wai

Divulgação
Maggie Cheung e Leslie Cheung em cena de "Dias Selvagens', segundo longa de Wong Kar-wai


CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Para quem já conhece e cultua os filmes de Wong Kar-wai o lançamento, mesmo que tardio, de "Dias Selvagens" é um presentão de Ano Novo. Para quem ainda não os conhece, trata-se de uma sedutora porta de entrada ao universo mental e estético de um dos diretores mais sofisticados do aclamado cinema oriental.
O longa, de 1990, é o segundo de Kar-wai e demarca com clareza todo um conjunto pessoal e referencial que se desdobraria com ainda mais coerência em seus títulos seguintes ("Ashes of Time", "Amores Expressos", "Anjos Caídos", "Felizes Juntos", "Amor à Flor da Pele", o episódio em "Eros" e "2046").
Dois elementos fundamentais da beleza desses títulos -a indagação do tempo dentro da narrativa trabalhado com uma fluidez sem limites definidos, e o amor como uma ferida nunca cicatrizada que os corpos dos amantes carregam ao longo de suas vidas- encontram em "Dias Selvagens" o lugar de sua aparição. Visto retrospectivamente, o título ajuda a confirmar o caráter de obra que se aponta com freqüência no trabalho do diretor chinês e que confirma seu status de autor.
Essa distinção se considera na perspectiva não só de um estilo, de uma marca visual que caracteriza seu modo de filmar, como também na estrutura dos relatos, que tratam o tempo de forma indeterminada e conduzem o espectador para fora da previsibilidade narrativa.
Além desse tratamento formal, "Dias Selvagens" também introduz o tempo na figura de relógios, mostrados com insistência, e das referências nos diálogos a momentos e instantes definitivos, marcas que a memória se encarregará de reter para depois lançar numa busca infinita modulada pelo sentimento de nostalgia.

Contemplação
Outro efeito de assinatura é a obsessão do diretor pelo amor como um afeto que não se realiza e, por isso, não se encerra. Seus amantes vivem uma eterna insatisfação ou encontram-se à deriva, em decorrência dos encontros fortuitos ou da contemplação por objetos sempre fugidios. Como já disse em entrevistas, Kar-wai define "o amor como uma doença cujos efeitos destrutivos se mantêm a longo prazo".
Em "Dias Selvagens" esse tema determina e justifica a existência de todos os personagens: Su Li ama Yuddy, um jovem que brinca de seduzir e abandonar suas conquistas, entre elas a dançarina Lulu, por quem o parceiro de Yuddy, Zeb, se apaixona, enquanto um policial ama Su Li sem ser correspondido, e Rebecca, mãe adotiva, busca satisfação gratificando outros rapazes financeiramente. Por trás, uma paixão edipiana pela mãe desconhecida alimenta a atitude de Don Juan do protagonista.
"Dias Selvagens" traz também a primeira aparição de referências latinas no repertório do diretor. A trilha é movida a standards de Xavier Cugat, responsáveis pela aura nostálgica de anos 60, espécie de tempo perdido nas ficções de Kar-wai.
Mas é na trama e na estrutura que essa referência se encontra escondida, pois o filme se inspira livremente em "Boquinhas Pintadas", do argentino Manuel Puig. Foi do romance de Puig que o diretor extraiu sua idéia de uma narrativa sem referência cronológica definida e a aura de um passado reconstituído como imagens de filmes hollywoodianos, cuja matriz aqui é "Juventude Transviada", de Nicholas Ray. De todo o imponente edifício que Kar-wai construiu nos anos seguintes, "Dias Selvagens" deve ser visto como a pedra fundamental.

DIAS SELVAGENS     
Direção: Wong Kar-wai
Produção: Hong Kong, 1990
Com: Leslie Cheung, Maggie Cheung
Quando: em cartaz no HSBC Belas Artes/Sala Villa-Lobos


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