São Paulo, sábado, 05 de janeiro de 2008

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Robert Alter e o "livro dos livros"

A familiaridade com o hebraico permite-lhe uma aproximação minuciosa da superfície do texto bíblico

CRÍTICO E ensaísta, leitor arguto de Kafka, Flaubert e Benjamin, professor na Universidade da Califórnia e hebraísta respeitado, o americano Robert Alter combinou os pólos antigo e moderno de seu interesse, atribuindo a si mesmo tarefa tão espinhosa quanto essencial: a de ler o Antigo Testamento com olhos treinados para seu uso singular, complexo e perito dos recursos da narrativa de ficção, tomando a Bíblia como exemplo extremamente bem-sucedido, para dizer pouco, de organização literária da linguagem.
Em "A Arte da Narrativa Bíblica", 1981, que agora ganha edição brasileira, Alter mostra como a natureza compósita dos materiais narrativos envolvidos na Bíblia, sua finalidade religiosa e proximidade da tradição nacional israelita, não devem encobrir o fato primordial de que o narrador bíblico (rótulo sob o qual se escondem os vários responsáveis pela fixação do texto em sua versão canônica) sempre age como escritor, mobilizando a totalidade de seus recursos imaginativos e expressivos e empenhando-se em obter o máximo rendimento estético para sua obra.
Seguindo pistas deixadas por Erich Auerbach no ensaio inaugural de "Mimesis" ("A Cicatriz de Ulisses"), dedicado a uma comparação entre o narrador da "Odisséia" e o do episódio do sacrifício de Abraão, Alter faz notar que o laconismo do narrador bíblico, seu uso mais ou menos intenso do diálogo, sempre jogando com lacunas expositivas, repetições e alusões oblíquas, corresponde a uma apreensão fina da tensão dialética que se arma entre a clareza dos desígnios divinos, fora do tempo, e a margem de confusão moral que se abre com a liberdade humana, na infinidade de modos para sua concretização na história.
A familiaridade com o hebraico permite-lhe uma aproximação minuciosa da superfície do texto bíblico, leitura cerrada vedada a teóricos de espírito mais totalizante, como Northrop Frye, em seu excepcional "O Código dos Códigos - A Bíblia e a Literatura" (1982). Sempre apoiado na percepção sutil das variações de foco, da ênfase alternada no sumário narrativo ou na narração em cena, Alter faz das leituras de episódios como o do encontro entre José e seus irmãos no Egito, ou o da escalada política de Davi, terreno seguro para assinalar tanto convenções de gênero remotas, quanto efeitos construtivos discretos, apagados pelo tempo ou pelas traduções.
Mais do que evidenciar a importância das palavras-chave no Antigo Testamento, faróis lingüísticos que enfeixam os fios dispersos da narrativa, da recorrência como princípio organizador do todo, visível na retomada constante de ações ou cenas típicas do diálogo como elemento decisivo no jogo de sombra e luz na caracterização dos heróis bíblicos, o livro de Robert Alter nos faz enxergar e saborear o "livro dos livros" muito mais que um repositório de imagens a ser ocasionalmente saqueado por escritores em bloqueio criativo.


A ARTE DA NARRATIVA BÍBLICA
Autor:
Robert Alter
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46 (285 págs.)
Avaliação: ótimo


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