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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Robert Alter e o "livro dos livros"
A familiaridade com o hebraico permite-lhe uma aproximação minuciosa da superfície do texto bíblico
CRÍTICO E ensaísta, leitor arguto de Kafka, Flaubert e Benjamin, professor na Universidade da Califórnia e hebraísta respeitado, o americano Robert Alter
combinou os pólos antigo e moderno de seu interesse, atribuindo a si
mesmo tarefa tão espinhosa quanto
essencial: a de ler o Antigo Testamento com olhos treinados para seu
uso singular, complexo e perito dos
recursos da narrativa de ficção, tomando a Bíblia como exemplo
extremamente bem-sucedido, para
dizer pouco, de organização literária
da linguagem.
Em "A Arte da Narrativa Bíblica",
1981, que agora ganha edição brasileira, Alter mostra como a natureza
compósita dos materiais narrativos
envolvidos na Bíblia, sua finalidade
religiosa e proximidade da tradição
nacional israelita, não devem encobrir o fato primordial de que o narrador bíblico (rótulo sob o qual se escondem os vários responsáveis pela
fixação do texto em sua versão canônica) sempre age como escritor, mobilizando a totalidade de seus recursos imaginativos e expressivos e empenhando-se em obter o máximo
rendimento estético para sua obra.
Seguindo pistas deixadas por
Erich Auerbach no ensaio inaugural
de "Mimesis" ("A Cicatriz de Ulisses"), dedicado a uma comparação
entre o narrador da "Odisséia" e o do
episódio do sacrifício de Abraão, Alter faz notar que o laconismo do narrador bíblico, seu uso mais ou menos intenso do diálogo, sempre jogando com lacunas expositivas, repetições e alusões oblíquas, corresponde a uma apreensão fina da tensão dialética que se arma entre a clareza dos desígnios divinos, fora do
tempo, e a margem de confusão moral que se abre com a liberdade humana, na infinidade de modos para
sua concretização na história.
A familiaridade com o hebraico
permite-lhe uma aproximação minuciosa da superfície do texto bíblico, leitura cerrada vedada a teóricos
de espírito mais totalizante, como
Northrop Frye, em seu excepcional
"O Código dos Códigos - A Bíblia e a
Literatura" (1982). Sempre apoiado
na percepção sutil das variações de
foco, da ênfase alternada no sumário
narrativo ou na narração em cena,
Alter faz das leituras de episódios
como o do encontro entre José e
seus irmãos no Egito, ou o da escalada política de Davi, terreno seguro
para assinalar tanto convenções de
gênero remotas, quanto efeitos
construtivos discretos, apagados pelo tempo ou pelas traduções.
Mais do que evidenciar a importância das palavras-chave no Antigo
Testamento, faróis lingüísticos que
enfeixam os fios dispersos da narrativa, da recorrência como princípio
organizador do todo, visível na retomada constante de ações ou cenas
típicas do diálogo como elemento
decisivo no jogo de sombra e luz na
caracterização dos heróis bíblicos, o
livro de Robert Alter nos faz enxergar e saborear o "livro dos livros"
muito mais que um repositório de
imagens a ser ocasionalmente saqueado por escritores em bloqueio
criativo.
A ARTE DA NARRATIVA BÍBLICA
Autor: Robert Alter
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46 (285 págs.)
Avaliação: ótimo
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