São Paulo, sábado, 05 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"Conversas com Gaudí"

Obra reafirma a importância de Gaudí para Barcelona

Livro traz encontros do arquiteto com o colega Martinell Brunet durante 11 anos

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1915, o então estudante de arquitetura catalão e, depois, arquiteto César Martinell Brunet aproxima-se de Antoni Gaudí (1852/1926) em virtude de seu fascínio sentimental (mais do que consciente, como anota) pela construção da igreja Sagrada Família.
Gaudí deixara seus projetos de lado -o último deles a estupenda casa La Pedrera- para tornar-se seu diretor, em 1883, um ano após o início de sua edificação, e devotar o resto de sua existência à construção do que é considerada sua obra-prima, baseada no uso inovador de formas geométricas naturais, com uma complexidade que dialoga com as artes egípcias, assírias, greco-romanas e arábicas do norte da África e a igreja Santa Sofia de Constantinopla, em particular.
A importância do livro reside no fato de as notas de Brunet consistirem na única "entrevista" concedida por Gaudí em vida, que detestava escrever. Entrevista que vai de 1915 a 1926.
Brunet registrou muito de seu pensamento artístico e científico e de suas reflexões sobre a Sagrada Família. Por exemplo: "Revela que esta porta será também policrômica; diz que cor é vida e a falta de cor é manifestação mais visível da morte". Gaudí falava constantemente da luz do "campo de Tarragona" ao seu amigo Brunet, como uma luz superior, que predispunha os catalães do litoral a uma visão plástica das coisas. A cidade de Tarragona fica ao sul de Barcelona. Gaudí e Brunet nasceram em Reus, que se situa, sentido interior, próxima a ela.

Fellini
A igreja ainda está em obras, o que era previsto por Gaudí, que citava a Catedral de Colônia, "que esteve por centúrias sem abóbadas". No momento, ergue-se sua torre principal. A impressão que tive, agora em outubro, quando fiz leituras de poemas em Barcelona, na Casa América Catalunya, foi a de que estava dentro do filme "Roma", de Federico Fellini, especificamente na cena em que os trabalhadores do metrô descobrem um sítio arqueológico. A trilha sonora da visita consistiu no som de chiados ásperos de guindastes em manobra e de serras estridentes. A Sagrada Família está viva não só por sua complexidade mas porque, penso, Gaudí -um visionário- a previu como uma obra sempre em aberto, em movimento, como um móbile.
Na Quinta Güell, construída por Gaudí no final dos anos 1880 (Eusébio Güell foi próspero empresário que o apoiou incondicionalmente até sua própria morte) já se podem ver os "trencadís", colagens de azulezos quebrados de várias cores, rejuntados numa só peça. Os "trencadís" (palavra catalã) ficam mais explícitos ainda no Parque Güell, realizado de 1900 a 1914.
Neste parque, Gaudí utilizou-se do procedimento ready-made, sem sequer conhecer Marcel Duchamp. Aproveitou as curvas do morro, onde foi traçado, aproveitou-se das plantas locais, usou as palmeiras como falsos pilares etc.
O que quero assinalar é que Picasso não teria composto "Les Demoiselles D'Avignon" (1907), sem conhecer os "trencadís". Picasso residiu por duas vezes em Barcelona antes de fazer este trabalho e só se tornou Picasso após sua estadia na cidade, de 1899 a 1900. Antes, como no caso de Machado de Assis, era um pintor convencional (por duas décadas). Picasso freqüentou a Carrer d'Avinyó, em Barcelona, onde havia bares e bordéis. As meninas d'Avinyó são prostitutas dessa rua.
A Sagrada Família é uma dessas obras ímpares do século 20 e, como segue, do 21. Disse Gaudí a Brunet: "...Afirma que a palavra é o tempo. (...) através da palavra, vivenciamos épocas passadas e futuras...".
As anotações de Brunet permitem-nos verificar que o catolicismo de Gaudí era dissociado de sua obra lúdica e que, como o historiador da arte Giulio Carlo Argan, prefeito de direito, que recuperou Roma, Gaudí foi o prefeito de fato de Barcelona.


RÉGIS BONVICINO é poeta, autor de "Página Órfã" e "Um Barco Remenda o Mar - Dez Poetas Chineses Contemporâneos" (ambos pela Martins Fontes).

CONVERSAS COM GAUDÍ
Autor:
César Martinell Brunet
Tradução: Alberto Marsicano
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 35 (216 págs.)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Trechos
Próximo Texto: Vitrine
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.