São Paulo, #!L#Sábado, 05 de Fevereiro de 2000


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DÉCIO DE ALMEIDA PRADO
Crítico mudou a história do teatro brasileiro

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Em meados dos anos 50, Décio de Almeida Prado foi a uma festa no apartamento de Cacilda Becker, na avenida Paulista, coisa que só fazia raramente (ele, que exigia de si mesmo uma distância reverente de seus criticados).
Ao chegar, a classe teatral toda reunida, deu de cara com Procópio Ferreira, o ator que Décio vinha se esforçando por combater -em sua defesa de um novo teatro, profissional e de maior compromisso com a arte, o teatro do TB, contra o velho teatro dos comediantes, como Procópio.
O ator, ao cumprimentá-lo, prendeu a sua mão longamente e com certa força, enquanto dizia frases espirituosas, mas de sentido dúbio, até agressivo.
A cena foi relembrada pelo crítico, décadas depois, como um de seus momentos de maior constrangimento, nos 22 anos em que conduziu o teatro de São Paulo e do país, a partir do posto de crítico do jornal "O Estado de S. Paulo". Ele viria a descrever sua atuação persistente contra Procópio como "o sacrifício ritual de um pai".
Foi o próprio Procópio quem levou Décio, ainda adolescente, na virada dos anos 30, a se apaixonar pelo teatro. O futuro crítico foi levado por seu pai, para ver "Deus lhe Pague", e começou ali uma ligação de seis décadas com o palco.
Só nos anos 90 e depois de morta sua mulher foi que o crítico veio a se afastar definitivamente, jamais se recusando a conversar sobre teatro, lembrar o passado, mas insistindo que a sua paixão então já era a ópera, ou ainda, a história.

Ator
Antes de se iniciar na crítica, o que fez nos anos 40, como crítico da revista literária "Clima", Décio de Almeida Prado passou por experiências diversas com o palco. Chegou a ser ator, em 39, protagonista de um espetáculo de Alfredo Mesquita, num papel romântico.
Foi depois diretor de uma companhia universitária, em que encenou peças com Cacilda Becker, a atriz que foi, de certa maneira, seu alter ego no palco, a intérprete que deu corpo às suas idéias.
Essas eram ligadas sobretudo ao chamado Cartel, o grupo de diretores que, na primeira metade do século, fez uma "revolução" semelhante no teatro francês.
Elas abrangiam a primazia da arte, contra a comercialização, e uma atenção maior à encenação, mas sempre a serviço do texto.
Ou ainda, em outro caminho, pregava "o fim do naturalismo como cópia da realidade e o início de um teatro mais aberto para a imaginação, mais poético". Foi o que ele escreveu em sua primeira crítica para "Clima".
Décio aproximou-se dessas idéias numa viagem que fez a Paris aos 20 anos, onde encontrou Paulo Emílio Salles Gomes, seu maior amigo desde o primeiro ano do ginásio, e viu inúmeros espetáculos.
Décio, Paulo Emílio e Antonio Candido (esse, amigo de faculdade), reunidos afinal em "Clima", iniciaram um novo momento das artes e da produção intelectual em São Paulo, nos papéis, respectivamente, de crítico de teatro, de cinema e de literatura.

Modernistas
Décio lembrava rindo que todos, no grupo, queriam ser críticos literários, mas Antonio Candido destacava-se tanto que os demais tiveram de procurar outras áreas para escrever.
Nessa época, em seus 20 e poucos anos, os jovens críticos conviveram intensamente com os dois velhos modernistas, Oswald e Mario de Andrade. Tornaram-se mais amigos do primeiro, que os recebia em sua casa, com grande festa, mas acompanharam mais o ideário do segundo.
Oswald criou então a expressão que viria a se imprimir na geração "Clima": eram os "chato-boys".
Eram quase todos egressos das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia, formada nos anos 30 com sustentação da família Mesquita, proprietária de "O Estado de S. Paulo", faculdade que foi o embrião físico e ideológico da Universidade de São Paulo, a USP. O pai de Décio, que era médico da família Mesquita, foi o primeiro diretor da faculdade.
O crítico começou no jornalismo diário em 1946, quando os jornais ainda tratavam o teatro como fato menor, como entretenimento, em textos que eram pouco mais do que registros publicitários. Décio nem assinava as suas críticas. Aos poucos, delineou um projeto para seu trabalho e para o próprio teatro brasileiro, que lhe causou não poucos problemas.
Uma companhia, da comediante Eva Todor, chegou a procurar a direção do jornal para pedir o enquadramento de Décio, depois de uma crítica mais severa.
Mas ele defendeu as suas propostas e conseguiu apoio, iniciando um combate que viria a estabelecer definitivamente o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) como modelo para o teatro no país, com influência também sobre o Rio.
Vale registrar que, ainda como diretor, Décio foi procurado para fazer as primeiras encenações tanto de "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, como de "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade. Recusou ambas, o que lembrava depois sem remorso, crítico também de seus próprios limites como artista.
Na crítica, fez inicialmente o questionamento rígido aos velhos comediantes, ao teatro bulevar, abrindo depois a defesa igualmente firme dos espetáculos do TBC, ainda que sem ceder em seu rigor no trato das encenações. Durante mais de duas décadas, foi como um condutor do teatro, também um mestre, com análises profundas de texto, direção, interpretação, formando mais de uma geração. Até hoje é lembrado por seus criticados como um homem que, nos seus textos mais agressivos, deixava vazar um carinho imenso pelo teatro.
Seu estilo, que pode ser revisto nas três coletâneas de críticas que editou ("Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno", de 55, "Teatro em Progresso", de 64, e "Exercício Findo", de 87), era sóbrio, elegante. Na última década de sua carreira como crítico, acumulou a função com a edição do "Suplemento Literário" de "O Estado", ajudando a firmar São Paulo como novo centro da produção intelectual no país, posição antes ocupada solitariamente pelo Rio.
Décio de Almeida Prado deixou o jornalismo no final dos anos 60, em meio à radicalização política do período. Um editorial de seu jornal, em defesa da censura, causou uma reação irada da classe teatral, a qual, Cacilda Becker à frente, devolveu os prêmios Saci dados por "O Estado". O crítico, que tomou a atitude como um questionamento de sua própria atuação, um rompimento com seu trabalho, embora os artistas tenham ressalvado que nada tinham contra ele, deixou a função definitivamente.
Passou a se dedicar à universidade, como professor e pesquisador, na faculdade de letras da USP. Escreveu livros que firmaram uma visão paradigmática da formação do teatro brasileiro, sobre o ator João Caetano, Procópio e outros -além de publicar reuniões de ensaios sobre todas as fases da produção teatral no país, desde os jesuítas no século 16, ensaios que, tomados no conjunto, compõem uma monumental História do Teatro Brasileiro. Entre os títulos estão "João Caetano e a Arte do Ator" (72), "Teatro Brasileiro Moderno" (88) e "Teatro de Anchieta a Alencar" (93).
Nos últimos anos, para além da ópera, voltou a se interessar por futebol. Era capaz de conversar longamente sobre o São Paulo, seu time.
Ano passado, acompanhou um jogo da seleção brasileira na casa de Sábato Magaldi, amigo e colega de crítica desde os anos 50, ao lado de outro apaixonado por futebol, o dramaturgo Plínio Marcos. Mas raramente, sobretudo depois que a saúde piorou, há cinco anos, Décio deixava sua casa no Pacaembu, numa rua quieta e arborizada, onde recebia estudantes, artistas e jornalistas com uma paciência de mestre.


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