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DÉCIO DE ALMEIDA PRADO
Crítico mudou a história do teatro brasileiro
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
Em meados dos anos 50, Décio
de Almeida Prado foi a uma festa
no apartamento de Cacilda Becker, na avenida Paulista, coisa que
só fazia raramente (ele, que exigia
de si mesmo uma distância reverente de seus criticados).
Ao chegar, a classe teatral toda
reunida, deu de cara com Procópio Ferreira, o ator que Décio vinha se esforçando por combater
-em sua defesa de um novo teatro, profissional e de maior compromisso com a arte, o teatro do
TB, contra o velho teatro dos comediantes, como Procópio.
O ator, ao cumprimentá-lo,
prendeu a sua mão longamente e
com certa força, enquanto dizia
frases espirituosas, mas de sentido dúbio, até agressivo.
A cena foi relembrada pelo crítico, décadas depois, como um de
seus momentos de maior constrangimento, nos 22 anos em que
conduziu o teatro de São Paulo e
do país, a partir do posto de crítico do jornal "O Estado de S. Paulo". Ele viria a descrever sua atuação persistente contra Procópio
como "o sacrifício ritual de um
pai".
Foi o próprio Procópio quem levou Décio, ainda adolescente, na
virada dos anos 30, a se apaixonar
pelo teatro. O futuro crítico foi levado por seu pai, para ver "Deus
lhe Pague", e começou ali uma ligação de seis décadas com o palco.
Só nos anos 90 e depois de morta sua mulher foi que o crítico veio
a se afastar definitivamente, jamais se recusando a conversar sobre teatro, lembrar o passado,
mas insistindo que a sua paixão
então já era a ópera, ou ainda, a
história.
Ator
Antes de se iniciar na crítica, o
que fez nos anos 40, como crítico
da revista literária "Clima", Décio
de Almeida Prado passou por experiências diversas com o palco.
Chegou a ser ator, em 39, protagonista de um espetáculo de Alfredo Mesquita, num papel romântico.
Foi depois diretor de uma companhia universitária, em que encenou peças com Cacilda Becker,
a atriz que foi, de certa maneira,
seu alter ego no palco, a intérprete
que deu corpo às suas idéias.
Essas eram ligadas sobretudo ao
chamado Cartel, o grupo de diretores que, na primeira metade do
século, fez uma "revolução" semelhante no teatro francês.
Elas abrangiam a primazia da
arte, contra a comercialização, e
uma atenção maior à encenação,
mas sempre a serviço do texto.
Ou ainda, em outro caminho,
pregava "o fim do naturalismo
como cópia da realidade e o início
de um teatro mais aberto para a
imaginação, mais poético". Foi o
que ele escreveu em sua primeira
crítica para "Clima".
Décio aproximou-se dessas
idéias numa viagem que fez a Paris aos 20 anos, onde encontrou
Paulo Emílio Salles Gomes, seu
maior amigo desde o primeiro
ano do ginásio, e viu inúmeros espetáculos.
Décio, Paulo Emílio e Antonio
Candido (esse, amigo de faculdade), reunidos afinal em "Clima",
iniciaram um novo momento das
artes e da produção intelectual em
São Paulo, nos papéis, respectivamente, de crítico de teatro, de cinema e de literatura.
Modernistas
Décio lembrava rindo que todos, no grupo, queriam ser críticos literários, mas Antonio Candido destacava-se tanto que os
demais tiveram de procurar outras áreas para escrever.
Nessa época, em seus 20 e poucos anos, os jovens críticos conviveram intensamente com os dois
velhos modernistas, Oswald e
Mario de Andrade. Tornaram-se
mais amigos do primeiro, que os
recebia em sua casa, com grande
festa, mas acompanharam mais o
ideário do segundo.
Oswald criou então a expressão
que viria a se imprimir na geração
"Clima": eram os "chato-boys".
Eram quase todos egressos das
primeiras turmas da Faculdade
de Filosofia, formada nos anos 30
com sustentação da família Mesquita, proprietária de "O Estado
de S. Paulo", faculdade que foi o
embrião físico e ideológico da
Universidade de São Paulo, a
USP. O pai de Décio, que era médico da família Mesquita, foi o
primeiro diretor da faculdade.
O crítico começou no jornalismo diário em 1946, quando os
jornais ainda tratavam o teatro
como fato menor, como entretenimento, em textos que eram
pouco mais do que registros publicitários. Décio nem assinava as
suas críticas. Aos poucos, delineou um projeto para seu trabalho e para o próprio teatro brasileiro, que lhe causou não poucos
problemas.
Uma companhia, da comediante Eva Todor, chegou a procurar a
direção do jornal para pedir o enquadramento de Décio, depois de
uma crítica mais severa.
Mas ele defendeu as suas propostas e conseguiu apoio, iniciando um combate que viria a estabelecer definitivamente o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) como
modelo para o teatro no país, com
influência também sobre o Rio.
Vale registrar que, ainda como
diretor, Décio foi procurado para
fazer as primeiras encenações
tanto de "Vestido de Noiva", de
Nelson Rodrigues, como de "O
Rei da Vela", de Oswald de Andrade. Recusou ambas, o que
lembrava depois sem remorso,
crítico também de seus próprios
limites como artista.
Na crítica, fez inicialmente o
questionamento rígido aos velhos
comediantes, ao teatro bulevar,
abrindo depois a defesa igualmente firme dos espetáculos do
TBC, ainda que sem ceder em seu
rigor no trato das encenações.
Durante mais de duas décadas, foi
como um condutor do teatro,
também um mestre, com análises
profundas de texto, direção, interpretação, formando mais de
uma geração. Até hoje é lembrado
por seus criticados como um homem que, nos seus textos mais
agressivos, deixava vazar um carinho imenso pelo teatro.
Seu estilo, que pode ser revisto
nas três coletâneas de críticas que
editou ("Apresentação do Teatro
Brasileiro Moderno", de 55, "Teatro em Progresso", de 64, e "Exercício Findo", de 87), era sóbrio,
elegante. Na última década de sua
carreira como crítico, acumulou a
função com a edição do "Suplemento Literário" de "O Estado",
ajudando a firmar São Paulo como novo centro da produção intelectual no país, posição antes
ocupada solitariamente pelo Rio.
Décio de Almeida Prado deixou
o jornalismo no final dos anos 60,
em meio à radicalização política
do período. Um editorial de seu
jornal, em defesa da censura, causou uma reação irada da classe
teatral, a qual, Cacilda Becker à
frente, devolveu os prêmios Saci
dados por "O Estado". O crítico,
que tomou a atitude como um
questionamento de sua própria
atuação, um rompimento com
seu trabalho, embora os artistas
tenham ressalvado que nada tinham contra ele, deixou a função
definitivamente.
Passou a se dedicar à universidade, como professor e pesquisador, na faculdade de letras da
USP. Escreveu livros que firmaram uma visão paradigmática da
formação do teatro brasileiro, sobre o ator João Caetano, Procópio
e outros -além de publicar reuniões de ensaios sobre todas as fases da produção teatral no país,
desde os jesuítas no século 16, ensaios que, tomados no conjunto,
compõem uma monumental História do Teatro Brasileiro. Entre
os títulos estão "João Caetano e a
Arte do Ator" (72), "Teatro Brasileiro Moderno" (88) e "Teatro de
Anchieta a Alencar" (93).
Nos últimos anos, para além da
ópera, voltou a se interessar por
futebol. Era capaz de conversar
longamente sobre o São Paulo,
seu time.
Ano passado, acompanhou um
jogo da seleção brasileira na casa
de Sábato Magaldi, amigo e colega de crítica desde os anos 50, ao
lado de outro apaixonado por futebol, o dramaturgo Plínio Marcos. Mas raramente, sobretudo
depois que a saúde piorou, há cinco anos, Décio deixava sua casa
no Pacaembu, numa rua quieta e
arborizada, onde recebia estudantes, artistas e jornalistas com
uma paciência de mestre.
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