São Paulo, terça-feira, 05 de fevereiro de 2008

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Navalha na carne

Especialista em filmes de horror fala à Folha sobre ascensão do gênero "torture porn'

MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL

É o tipo de cena que fez muita gente passar mal nos cinemas americanos: uma garota pendurada de cabeça para baixo vai sendo lentamente fatiada com uma foice por uma mulher nua, deitada em uma banheira, em busca de um banho de sangue.
Ela está em "O Albergue 2", a última sensação do "torture porn" a chegar às locadoras brasileiras, e resume bem o porquê desse tipo de filme de horror ter sido rotulado assim pelos críticos -algo como "tortura pornográfica".
Desde o imenso e inesperado sucesso de "Jogos Mortais" (2004) e "O Albergue" (2005), os filmes de horror passaram a um novo patamar de brutalidade e explicitação, com tortura sádica em close e muito sangue derramado. Críticos enojados tanto com os filmes quanto com seu sucesso forjaram o rótulo "torture porn" para detonar de roldão todos eles.
Esqueceram-se, no entanto, de olhar a sociedade em que vivem, o mundo pós-11 de Setembro onde as cenas de tortura no Iraque viraram rotina. É o que afirma à Folha Adam Lowenstein, professor de estudos cinematográficos da Universidade de Pittsburgh (EUA) e autor de livro sobre o papel social dos filmes de horror.  

FOLHA - Já é possível estabelecer o papel da nova geração do horror?
ADAM LOWENSTEIN
- Acho que é um pouco cedo, como mostra o debate sobre o "torture porn". Para mim, isso é uma indicação de que a maioria dos críticos e parte do público ainda não estão prontos para lidar com esses filmes do modo como lidamos com "A Noite dos Mortos-Vivos" [de George A. Romero], que já é analisado rotineiramente com foco em sua importância social e política.
Não quero dizer que os filmes recentes que são colocados sob esse rótulo, como as séries "Jogos Mortais" e "O Albergue", são tão bons quanto "A Noite...", mas acho que, com o tempo, algumas coisas sobre esses filmes ficarão mais claras.
Olhando para as críticas da época do lançamento do filme de Romero, em 1968, percebe-se que ele também foi descrito como um "torture porn".

FOLHA - O rótulo é inadequado?
LOWENSTEIN
- Acho-o infeliz e pouco útil ao debate. O termo tem uma conotação muito negativa e sugere que a violência nesses filmes é gratuita, irresponsável. Não quero generalizar, mas alguns deles são violentos por um motivo. Uma coisa que ficará clara com o tempo é que o rótulo "torture porn" terá de ser analisado em relação ao escândalo da tortura em Abu Ghraib, na Guerra do Iraque. Muitos dos filmes foram lançados e discutidos dentro do contexto pós-11 de Setembro.

FOLHA - O nível geral de violência explícita aumentou nos filmes, mesmo em outros gêneros?
LOWENSTEIN
- Sim, e acho que faz sentido que tenha aumentado no geral. Os filmes não têm mais o papel central que costumavam ter na consciência social, precisam brigar muito mais para serem notados. E uma maneira de fazer isso é ficar mais gráfico, visceral, tendendo ao confronto, gritando por atenção. Muito disso é preocupante, mas não acho que estejamos testemunhando uma escalada sem precedentes.
O nível de violência que vemos agora não é tão diferente de momentos anteriores de crise, como o período dos anos 80 em que "Rambo" surgiu.

FOLHA - Mas, até pela evolução dos efeitos especiais, os filmes hoje não estão indo mais longe do que nunca nas cenas explícitas?
LOWENSTEIN
- Não acho. Se olharmos para coisas tão recentes quanto os "slasher movies" do fim da década de 70, aqueles filmes são tão brutais quanto "O Albergue". Os "Sexta-Feira 13" são bastante gráficos e brutais, com ótimos efeitos especiais feitos com látex. Hoje, temos computação gráfica, que é bem menos visceral, os efeitos com látex são bem mais realistas, corporais. Você nota em filmes como "O Albergue" ou "Grindhouse" a preferência pelo látex, o que mostra o desejo nostálgico de voltar a um tempo em que a brutalidade era mais encorpada.

FOLHA - Sam Raimi disse que é a quebra de tabus que move os filmes de horror. O sr. concorda?
LOWENSTEIN
- Acho que a quebra de tabus é central para o gênero, mas a maneira como eles são quebrados varia muito. Pense em momentos importantes, como 1968, que teve "A Noite dos Mortos-Vivos" e "O Bebê de Rosemary", dois filmes bem diferentes, um independente, outro de um grande estúdio. Ambos estabeleceram novidades, e ainda sentimos suas influências, mas não podemos dizer que quebraram tabus da mesma forma.

FOLHA - Como se explica o imenso sucesso desses novos filmes?
LOWENSTEIN
- Há vários fatores, um deles é que foram lançados em uma época em que havia uma demanda não atendida por violência gráfica nas telas. Havia poucos filmes dispostos a explorar a parte mais extrema da categoria R da censura [em que menores de 17 anos precisam da companhia de um adulto], o modelo em voga era o da série "Pânico", de filmes mais leves. "Jogos Mortais" e "O Albergue" apostaram nesse nicho, e estavam certos.

FOLHA - O que o sr. acha do novo terror asiático?
LOWENSTEIN
- Vejo um paralelo forte entre os filmes de horror japoneses da década de 90 até hoje com os americanos dos anos 60 e 70. Além de se parecerem na popularidade que atingiram, ambos os ciclos surgiram a partir de crises sociais seríssimas. Nos EUA, foram a Guerra do Vietnã e o movimento dos direitos civis, enquanto no Japão foi o esfacelamento da economia. Não surpreende que filmes como "O Chamado", "O Grito" e "Pulso" tenham notável ligação com a então fracassada economia baseada na tecnologia -são filmes obcecados por celulares, TVs, vídeos.

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