São Paulo, sexta-feira, 05 de fevereiro de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Banho de cultura republicana


Além do Rio, querem cultura e me obrigam a visitar museus; percorro salas, muitas salas


RECEBO PARENTES distantes, mas queridos, que desejam conhecer o Rio e tomar um banho de cultura. Nunca haviam deixado o obscuro burgo num lugar perdido na serra do Mar, querem ver tudo, aproveitar tudo. Ocupam um bom hotel em Copacabana, mas recusam o guia local que, por preços módicos, se oferece para servir de cicerone, mostrando as maravilhas da cidade dita maravilhosa. Têm um primo distante e desocupado (na opinião deles) e me escolhem para a missão de sacrifício.
A primeira vontade é de mandar os parentes tomarem banho em Niterói ou fazer uma estação de férias em Marienbad, como naquele filme de Alain Resnais.
Mas acabo no Pão de Açúcar inventando detalhes fantásticos sobre o bondinho. No Corcovado, invento a dimensão dos braços do Redentor, mostro ao longe a cara do imperador na pedra da Gávea -explico que não se parece com o Adriano, do Flamengo, mas com dom Pedro 2º. Cumpro todo o roteiro barato de turista pobre e pouco exigente.
Mas, além do Rio, querem cultura e me obrigam a visitar museus. Percorro salas e salas, muitas salas; leques e leques, muitos leques; xícaras e xícaras, muitas xícaras, eventualmente um cocar de índio, a múmia de algum contraparente de faraó que não se sabe como veio para cá, o uniforme de algum almirante.
Já conheço de peregrinações infantis o museu Nacional e o Histórico. A novidade seria o da República, bolação útil por sinal, no mesmo palácio que serviu de sede do governo até a inauguração de Brasília.
Os visitantes desejam ver o quarto onde Getúlio Vargas se matou. Um porteiro nos obriga a calçar vastas pantufas e, em vez do quarto fatal, a primeira coisa que aparece é a espada do barão de Ladário ou outro nome parecido.
O barão estivera presente à Proclamação da República e a espada assim se justifica no museu da própria. Depois: leques, leques, leques. Xícaras, xícaras, xícaras. De repente, o vestido que dona Sara usou na posse de JK, ao lado dos óculos de Tamandaré ou de outro herói equivalente da história pátria.
Acabado o térreo, subir escadas, escadas, enormes escadas. As pantufas atrapalham, e há escrúpulo em tirar aquilo dos pés. A senhora idosa que integra o grupo pede arrego.
-Não há elevadores?
O guardião (acho que os museus são entregues a porteiros com esse nome conventual) diz que há vários, mas para aproveitar leques e xícaras, o melhor é mesmo usar as escadas.
O quarto de Getúlio é no último andar, e, até o terceiro, sobe-se o equivalente ao sexto, talvez sétimo andar de um edifício moderno. O pé direito desses palácios neoclássicos é alto, equivale a três de um prédio de apartamentos
A senhora idosa desanima de ver o quarto de Getúlio. Fica pelo segundo andar admirando o tinteiro belga doado pelo governo búlgaro ao Paraguai, hoje pertencente à coleção de Nilo Peçanha.
Finalmente, o quarto de 24 de agosto. Garantem que está igualzinho ao que era em 1954. Arrumadinho, sem enfeites, ainda impressiona. Guarda a cena final da maior tragédia de nossa república. Há um outro também muito visitado, o do cardeal Pacelli, futuro papa Pio 12, que ali dormiu duas noites em 1936. Para homenageá-lo, colocaram no quarto um horrível busto, intitulado "A Prece".
E agora, algumas sugestões a quem interessar possa ou deva: primeiro, utilizar os elevadores, fazendo o visitante subir primeiramente, e depois, na base do para baixo todo santo ajuda, descer até a espada do barão de Ladário ou Lampadosa -agora é que não lembro mais.
Segundo: naquele dia, havia mais portas fechadas do que abertas no Museu da República. Isso pode ser símbolo adequado a uma república, mas não a um museu. Finalmente, organizar um museu só de leques, aproveitando todos os leques existentes em todos os museus do Brasil. Idem para as xícaras. Prometo visitá-los e levarei de quebra os parentes da serra do Mar.
À saída, ia esquecendo de tirar as pantufas. O porteiro (ou guardião) veio atrás, puniu-me severamente, obrigando-me a visitar alguns salões do térreo. Mas não importa. Ano que vem estaremos todos em Marienbad. (Texto atemporal, não se refere a qualquer museu nacional ou estrangeiro.)


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