São Paulo, sábado, 05 de fevereiro de 2011

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Artista egípcio vê "história sendo reescrita"

Khaled Hafez, que participa de mostra em SP, desiste de vir ao Brasil para participar de protestos contra ditador

Para ele, levante contra os 30 anos de poder de Hosni Mubarak provoca também revolução cultural no Egito

SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Desde que viu e filmou o assassinato do presidente egípcio Anwar El Sadat há 30 anos, o artista Khaled Hafez, 47, perdeu o interesse por líderes de qualquer tipo. Fez disso mote central de sua obra, interrompida pela fúria que abala o Egito há dez dias.
Ele transformou seu ateliê nos arredores da praça Tahrir, no Cairo, epicentro do levante contra o ditador Hosni Mubarak, numa espécie de barricada contra a violência, já que ruas e avenidas estão bloqueadas por tanques. Agora, lidera uma campanha por doações de sangue.
Também trocou o dia pela noite, passando o tempo todo acordado, ao lado de vizinhos, na tentativa de proteger suas casas e famílias.
Mas parte do esforço foi em vão. Anteontem, Hafez enterrou o corpo de Ahmed Bassiouny, videoartista e professor da Universidade Helwan, morto no confronto.
"Ele foi sufocado na multidão pelo gás lacrimogêneo", contou Hafez à Folha, por telefone, do Cairo. "Depois acabou sendo atropelado por um carro de polícia."
Hafez acredita, como uma série de analistas políticos e mesmo a ONG Repórteres sem Fronteiras, que o recrudescimento da violência nos últimos dias, com manifestantes pró-Mubarak invadindo a praça a cavalo e camelo, está sendo coordenada por agentes do próprio governo.
É com essa sombra de dúvida que enxerga o poder no Egito desde que viu ruir uma série de promessas oficiais, culminando no ataque fatal a Sadat, de quem o atual ditador era vice-presidente.

EXPOSIÇÃO
Ele esquadrinha parte dessa história nas obras que expõe no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a partir de quarta-feira. Hafez viria para a abertura da mostra, mas desistiu de viajar.
"Não é um bom momento para deixar o país", diz o artista. "Por motivos ideológicos e porque estamos vendo a história ser reescrita."
Em "Revolution", vídeo que estará na mostra paulistana, Hafez ironiza as promessas do golpe militar de 1952, que tentou erradicar a presença britânica no país. Também prometiam maior igualdade social e distribuição de riqueza, liberdade e respeito a crenças e etnias.
Na tela dividida em três, um mesmo ator encarna os três pilares da velha revolução. Em trajes militares, empunha uma arma, sublinhando uma vontade bélica por trás da nova ordem.
Depois, vestido como muçulmano, bolina bonecas e decepa suas cabeças com o facão usado por egípcios para cortar carne, em alusão ao fundamentalismo religioso.
De terno e gravata, remete à abertura econômica do país. Ele martela pregos na superfície de uma mesa, ação rítmica que tenta ilustrar a estafa dos trabalhadores.
Mas agora, diante da revolução em curso, Hafez diminui a própria obra. "Isso tudo é só um vídeo", diz ele. "Tenho inveja desses jovens que lideraram o levante por não ter pensado nisso há 15 anos. Essa batalha é chocante e inesperada, faz tudo que a minha geração fez no plano político parecer uma piada."

REVOLUÇÃO DIGITAL
Muitos desses jovens, alguns alunos de Hafez, articularam manifestações contra o governo usando Facebook, Twitter e outras redes sociais, no que ele chama de uma "total revolução digital".
"Minha geração nunca foi tão organizada, venho de um momento em que artistas egípcios só lutavam pelo reconhecimento internacional", lembra Hafez. "Agora esses artistas estão lutando por algo que é muito maior."
E quase toda essa luta foi documentada pelas câmeras de seus telefones celulares, por bem ou por mal.
"Vamos ver muitas obras em vídeo e fotografia registrando o que ocorreu nos últimos dias", diz Hafez. "A arte no Egito nesses próximos anos vai ser tão surpreendente quanto a revolução, nunca mais será a mesma. Essa também é a primeira revolução cultural na história do país."


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