São Paulo, sábado, 05 de fevereiro de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Vargas Llosa escreve bom livro, mas se repete e perde viço

Em "O Sonho do Celta", peruano vencedor do Nobel ficcionaliza vida do aventureiro irlandês Roger Casement

DANIEL BENEVIDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Mario Vargas Llosa poderia ter ganho o Nobel há décadas, quando lançou "Tia Julia e o Escrevinhador" (1977), "Conversa na Catedral" (1969) e "Pantaleão e as Visitadoras" (1973). Teria sido justo.
De lá para cá, os livros continuam ótimos, mas parecem ter perdido parte da graça -ou do viço. Talvez por ele continuar um escritor extemporâneo permanentemente preso aos códigos do realismo no século 19. Flaubert é seu norte e nada lhe faltará.
O que é uma qualidade e um problema. Poucos hoje contam melhor uma história -com começo, meio e fim- do que o peruano. E, no entanto, ao terminar a leitura de "O Sonho do Celta", seu novo romance, previsto para ser lançado no Brasil em maio, a sensação é de que algo se perdeu no caminho.
Há momentos empolgantes, e o personagem central não poderia ser melhor. Mas tudo parece um tanto pedestre, sem epifanias ou lances de imaginação, por mais que o entusiasmo de Llosa seja evidente em cada linha.
Basicamente, o livro conta a história de Roger Casement (1864-1916), personagem real e romanesco por excelência, herói nacional da Irlanda e grande defensor dos direitos humanos. Suas denúncias no Congo belga e em Putumayo, no Peru, foram essenciais para o desbaratamento do cruel sistema colonial, pelo qual negros e índios eram escravizados, mutilados e mortos para melhor servir à exploração da borracha.
Llosa foi a cada lugar por onde Casement passou, pesquisou documentos e conversou com parentes e especialistas. O resultado de tanta aplicação dá o tom do livro, jovial, mas eminentemente biográfico, com poucos rasgos ficcionais.
Fascinado por Casement, Llosa parece não querer trair sua memória em troca de liberdade criativa. Em alguns trechos, sente-se o peso da fidelidade aos fatos, como se tudo devesse ser dito, detalhe a detalhe, em sequência por vezes previsível. Não é o caso do encontro de Casement e Joseph Con- rad (1857-1924), quando este era capitão de navio e explorava os rios no Congo. Ambos veem a África como um lugar desumanizador, mas de formas distintas.
O foco de Casement, a princípio devoto da missão civilizadora da colonização, estava nos nativos. Sua descrição dos castigos e assassinatos cometidos em nome do lucro e de Leopoldo 2º, rei da Bélgica, é de deixar o estômago embrulhado.
O mesmo se dá em Putumayo, em que os capangas da Peruvian Amazon Company torturavam e matavam índios por tédio. Casement encara os malfeitores armado apenas com a consciência. Mas sua vida se complica quando volta à Irlanda e tenta um acordo com os alemães, em plena Primeira Guerra, como forma de enfraquecer o poderio inglês durante o Levante separatista de Páscoa de 1916.
O desastroso plano para tirar a Irlanda do domínio inglês é incompreendido por boa parte dos próprios irlandeses, cujos filhos lutavam no exército britânico. Condenado à forca, Casement ainda teve de lidar com a reação furiosa à descoberta de seus diários, nos quais supostamente admite atos de "perversão" sexual.
Habilidosamente, Llosa não corrobora a calúnia, mas não se desfaz da ambiguidade do personagem. E trata os escritos íntimos de seu herói como fantasias de um desejo febril. É quando o livro, bom, envolvente, mas pouco ousado, sai um pouco do chão.

O SONHO DO CELTA
AUTOR Mario Vargas Llosa
EDITORA Alfaguara (importado)
QUANTO a definir (454 págs.);
lançamento previsto para maio
AVALIAÇÃO bom



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