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A falência das lideranças nacionais
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Com a duvidosa exceção de
alguns membros do atual governo, reina a voz geral de que
a situação é gravíssima -uma
das mais complicadas de nossa
história. Tem-se a impressão
de que a falta de credibilidade
é geral.
Se o presidente e o ministro
da Fazenda, num jantar, numa
entrevista coletiva, declaram
de boca cheia que dois e dois
são quatro, há um certo alívio.
Fica-se sabendo que, além disso, de dois e dois somados serem quatro, tudo é possível, inclusive três mais três serem cinco ou sete. Vivemos um episódio típico de nosso destino nacional, definido por Oswaldo
Aranha como um deserto de
idéias e homens. Ninguém
acredita em ninguém.
Lembro o já remoto ano de
1976: fui à Itália cobrir as eleições daquele ano. O chamado
Mundo Livre temia que os comunistas italianos tomassem o
poder. As prévias garantiam
que democratas cristãos e comunistas estavam empatados.
Quem vencesse teria apenas
5% do eleitorado a favor.
A situação da Itália era dramática: superinflação, sequestros, banditismos comum e político, as Brigadas Vermelhas
atuando à base de bombas que
matavam dezenas de pessoas.
A lira estava tão desvalorizada
quanto o real de hoje. Se alguém puxasse uma nota de
US$ 100 no hall de um hotel na
via Veneto, todo mundo corria
para cambiá-la no ""nero"
-que é o mercado paralelo local.
Surgiram então dois homens
importantes, Aldo Moro, da
Democracia Cristã, e Enrico
Berlinguer, do Partido Comunista. Eles começaram a conversar em busca de um ""compromesso storico", um pacto
pré-eleitoral que garantiria
um programa comum para
quem quer que fosse eleito.
Aldo Moro topou velhas reivindicações dos comunistas,
algumas das quais lhe davam
engulhos, como o plebiscito sobre o aborto -ele era católico
praticante, presidia as reuniões do Conselho com o terço
na mão. Por sua vez, Berlinguer passou por cima de pontos
sacrossantos para os partidos
comunistas da Europa, como
aceitar as bases da Otan na Itália -e lá no Kremlin foi tal o
engulho que vomitaram o partido italiano do sagrado seio
dos comunistas: Berlinguer foi
considerado um traidor que se
vendera aos capitalistas americanos.
Vieram as eleições. Os democratas cristãos ganharam por
apenas 2% dos votos. O compromisso funcionou. A partir
daquele ano, os gabinetes começaram a ser presididos por
membros dos partidos menores, como o Republicano e o Socialista. Prudentemente, democratas cristãos e comunistas
mantiveram-se à sombra e assim puderam instrumentalizar
o acordo Moro-Berlinguer. E
foi o que se viu. A lira se recuperou, a violência diminuiu, as
Brigadas Vermelhas tornaram-se anacrônicas.
A Itália pulou para o quinto
lugar no ranking dos países
mais ricos do mundo. Sim,
houve um preço. Sequestraram
e mataram Aldo Moro logo depois. Curiosamente, os terroristas sentiram que o perigo não
era Berlinguer nem o papa nem
Sophia Loren: era Aldo Moro,
que manobrara com genialidade para impedir a desestabilização da Itália -ponto estratégico da política soviética da
época para bagunçar a Europa
ocidental.
A ação suja não seria executada nem pelos russos nem pelos seus aliados mais nobres. A
Líbia e a Iugoslávia prestaram-se a esse papel que Giuseppe
Verdi, em ""Rigoletto", entregou ao sicário Sparafucile: o
dispara-fuzil. (Bem mais tarde,
o mesmo esquema seria montado para a tentativa de matar
o papa que procurava acabar
com a Cortina de Ferro.)
O massacre de Aldo Moro não
ameaçou o compromisso histórico. Por ocasião de suas exéquias, o mundo viu, espantado,
o papa Paulo 6º (amigo pessoal
de Moro) de joelhos ao lado de
um contrito Enrico Berlinguer,
cuja mulher, por sinal, também
vivia de terço na mão.
Lembro o episódio porque a
Itália não é a Suécia, a Bulgária, o Afeganistão. É um país
que muito se parece com o Brasil, tanto no bem como no mal.
Sobretudo no mal: nossos vícios nacionais e particulares
são quase os mesmos: bagunça,
corrupção, salve-se quem puder generalizado, pequenas espertezas, tendência ao doce-não-fazer-nada -que por sinal é expressão italiana. Temos
em comum, também, o lado
afetivo, esparramado, caricatural, a vocação para lágrimas
súbitas e estanques, a alegria e
-vá lá o exagero- o sol. Bem
verdade que o parnasiano astro-rei costuma nascer para todos, mas no Brasil e na Itália
ele é um personagem doméstico -""il sole mio"-, um amuleto familiar, um duende que
nos enfeitiça.
Para finalizar: na atual entaladela, precisamos encontrar
duas personalidades de partidos, posturas e ideologias diferentes que tenham a grandeza
de promover um compromisso
histórico para restaurar nossa
vida pública em sua confiabilidade e competência, nosso gosto nacional em sua plenitude,
nele incluindo o sol que nos
alegra o coração, o olhar e o
gesto.
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