São Paulo, Sexta-feira, 05 de Fevereiro de 1999
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A falência das lideranças nacionais

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial


Com a duvidosa exceção de alguns membros do atual governo, reina a voz geral de que a situação é gravíssima -uma das mais complicadas de nossa história. Tem-se a impressão de que a falta de credibilidade é geral.
Se o presidente e o ministro da Fazenda, num jantar, numa entrevista coletiva, declaram de boca cheia que dois e dois são quatro, há um certo alívio. Fica-se sabendo que, além disso, de dois e dois somados serem quatro, tudo é possível, inclusive três mais três serem cinco ou sete. Vivemos um episódio típico de nosso destino nacional, definido por Oswaldo Aranha como um deserto de idéias e homens. Ninguém acredita em ninguém.
Lembro o já remoto ano de 1976: fui à Itália cobrir as eleições daquele ano. O chamado Mundo Livre temia que os comunistas italianos tomassem o poder. As prévias garantiam que democratas cristãos e comunistas estavam empatados. Quem vencesse teria apenas 5% do eleitorado a favor.
A situação da Itália era dramática: superinflação, sequestros, banditismos comum e político, as Brigadas Vermelhas atuando à base de bombas que matavam dezenas de pessoas. A lira estava tão desvalorizada quanto o real de hoje. Se alguém puxasse uma nota de US$ 100 no hall de um hotel na via Veneto, todo mundo corria para cambiá-la no ""nero" -que é o mercado paralelo local.
Surgiram então dois homens importantes, Aldo Moro, da Democracia Cristã, e Enrico Berlinguer, do Partido Comunista. Eles começaram a conversar em busca de um ""compromesso storico", um pacto pré-eleitoral que garantiria um programa comum para quem quer que fosse eleito.
Aldo Moro topou velhas reivindicações dos comunistas, algumas das quais lhe davam engulhos, como o plebiscito sobre o aborto -ele era católico praticante, presidia as reuniões do Conselho com o terço na mão. Por sua vez, Berlinguer passou por cima de pontos sacrossantos para os partidos comunistas da Europa, como aceitar as bases da Otan na Itália -e lá no Kremlin foi tal o engulho que vomitaram o partido italiano do sagrado seio dos comunistas: Berlinguer foi considerado um traidor que se vendera aos capitalistas americanos.
Vieram as eleições. Os democratas cristãos ganharam por apenas 2% dos votos. O compromisso funcionou. A partir daquele ano, os gabinetes começaram a ser presididos por membros dos partidos menores, como o Republicano e o Socialista. Prudentemente, democratas cristãos e comunistas mantiveram-se à sombra e assim puderam instrumentalizar o acordo Moro-Berlinguer. E foi o que se viu. A lira se recuperou, a violência diminuiu, as Brigadas Vermelhas tornaram-se anacrônicas.
A Itália pulou para o quinto lugar no ranking dos países mais ricos do mundo. Sim, houve um preço. Sequestraram e mataram Aldo Moro logo depois. Curiosamente, os terroristas sentiram que o perigo não era Berlinguer nem o papa nem Sophia Loren: era Aldo Moro, que manobrara com genialidade para impedir a desestabilização da Itália -ponto estratégico da política soviética da época para bagunçar a Europa ocidental.
A ação suja não seria executada nem pelos russos nem pelos seus aliados mais nobres. A Líbia e a Iugoslávia prestaram-se a esse papel que Giuseppe Verdi, em ""Rigoletto", entregou ao sicário Sparafucile: o dispara-fuzil. (Bem mais tarde, o mesmo esquema seria montado para a tentativa de matar o papa que procurava acabar com a Cortina de Ferro.)
O massacre de Aldo Moro não ameaçou o compromisso histórico. Por ocasião de suas exéquias, o mundo viu, espantado, o papa Paulo 6º (amigo pessoal de Moro) de joelhos ao lado de um contrito Enrico Berlinguer, cuja mulher, por sinal, também vivia de terço na mão.
Lembro o episódio porque a Itália não é a Suécia, a Bulgária, o Afeganistão. É um país que muito se parece com o Brasil, tanto no bem como no mal.
Sobretudo no mal: nossos vícios nacionais e particulares são quase os mesmos: bagunça, corrupção, salve-se quem puder generalizado, pequenas espertezas, tendência ao doce-não-fazer-nada -que por sinal é expressão italiana. Temos em comum, também, o lado afetivo, esparramado, caricatural, a vocação para lágrimas súbitas e estanques, a alegria e -vá lá o exagero- o sol. Bem verdade que o parnasiano astro-rei costuma nascer para todos, mas no Brasil e na Itália ele é um personagem doméstico -""il sole mio"-, um amuleto familiar, um duende que nos enfeitiça.
Para finalizar: na atual entaladela, precisamos encontrar duas personalidades de partidos, posturas e ideologias diferentes que tenham a grandeza de promover um compromisso histórico para restaurar nossa vida pública em sua confiabilidade e competência, nosso gosto nacional em sua plenitude, nele incluindo o sol que nos alegra o coração, o olhar e o gesto.


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