São Paulo, segunda-feira, 05 de março de 2007

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GUILHERME WISNIK

Movimentos em defasagem


O sucesso de "Babel" parece dever-se a um conformismo: uma pseudocrítica interior ao próprio establishment

"BABEL" É um filme que tenciona abarcar algo (ou muito) do "estado de coisas" contemporâneo. Como em seus filmes anteriores, Alejandro Gonzáles Iñárritu lança mão de uma narrativa aberta, que cruza histórias distintas pelo fulcro de um acontecimento particular: um acidente. "Babel", no entanto, ganha ares de uma teorização geral, um registro, ou denúncia, do mal-estar atual diante de uma globalização excludente, um imperialismo que produz terrorismo e intolerância sob a bandeira da liberdade democrática.
Aqui, a violência erótica e desabusada de "Amores Brutos" (2000) se transforma em pessimismo, ao mesmo tempo em que as arestas vivas da produção mexicana são aparadas pelo padrão hollywoodiano. Por essa via, o sucesso de "Babel" parece dever-se a um conformismo: uma pseudocrítica interior ao próprio establishment, como o "happy end" dos protagonistas (não por acaso, a família americana) faz supor. No entanto, não devemos confundir as questões que animam o filme de Iñárritu com o esquematismo ideológico das últimas produções de Lars Von Trier.
A ótica de "Babel" é mais rente aos azares da vida cotidiana. Ou melhor, à fricção entre macroestruturas sociais (comportamentos culturais, políticas de Estado) e atitudes individuais, muitas vezes acidentais. Parece que a gratuidade das ações ordinárias, sejam elas boas ou más (desejos, invejas, auto-afirmações infantis), acaba sempre se cristalizando em direções equívocas quando confrontada com as convenções sociais (preconceito, coerção policial).
Aqui, não é a burocracia totalitária de regimes fechados que ossifica as relações humanas, mas a rede paranóica do livre mercado que as deturpa, desloca e ressignifica. É como se tudo fosse uma trama de mal-entendidos figurada na imagem da Torre de Babel inacabada, feita de enganos, de incomunicabilidade.
Em pelo menos um aspecto importante esse filme lembra outro: "O Céu que nos Protege" (1990), de Bernardo Bertolucci, baseado no romance de Paul Bowles (1949). Em ambos os casos, um casal em crise viaja à África Saariana, onde a iminência de morte de um dos dois promove um novo (ou último) encontro verdadeiro entre eles. O primeiro, no entanto, contracenando com a recente descolonização da África, realiza uma viagem metafísica ao mundo não-ocidental, estranho e irredutível, protagonizado por personagens que se declaram "viajantes" em vez de "turistas". Já o segundo expõe um mundo atravessado pela comunicação e pelo turismo, onde a aldeia mais recôndita é também "global". Sugestão à qual o portentoso aparato hollywoodiano, longe de banalizar, confere uma legitimidade sóbria.
Nesse sensível registro de época não há lugar para o heroísmo da experiência existencial de Bowles. Se o problema atual é estabelecer limites para o terrorismo e a imigração, é porque, na verdade, aquelas antigas fronteiras físicas e simbólicas já foram vazadas, a indicar a defasagem permanente entre os movimentos humanos e a imobilidade de suas instituições.

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