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GUILHERME WISNIK
Movimentos em defasagem
O sucesso de "Babel" parece dever-se a um conformismo: uma pseudocrítica interior ao próprio establishment
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"BABEL" É um filme que tenciona abarcar algo (ou
muito) do "estado de coisas" contemporâneo. Como em seus
filmes anteriores, Alejandro Gonzáles Iñárritu lança mão de uma narrativa aberta, que cruza histórias
distintas pelo fulcro de um acontecimento particular: um acidente. "Babel", no entanto, ganha ares de uma teorização geral, um registro, ou denúncia, do mal-estar atual diante de
uma globalização excludente, um
imperialismo que produz terrorismo e intolerância sob a bandeira da
liberdade democrática.
Aqui, a violência erótica e desabusada de "Amores Brutos" (2000) se
transforma em pessimismo, ao mesmo tempo em que as arestas vivas da
produção mexicana são aparadas
pelo padrão hollywoodiano. Por essa via, o sucesso de "Babel" parece
dever-se a um conformismo: uma
pseudocrítica interior ao próprio establishment, como o "happy end"
dos protagonistas (não por acaso, a
família americana) faz supor. No entanto, não devemos confundir as
questões que animam o filme de
Iñárritu com o esquematismo ideológico das últimas produções de
Lars Von Trier.
A ótica de "Babel" é mais rente aos
azares da vida cotidiana. Ou melhor,
à fricção entre macroestruturas sociais (comportamentos culturais,
políticas de Estado) e atitudes individuais, muitas vezes acidentais. Parece que a gratuidade das ações ordinárias, sejam elas boas ou más (desejos, invejas, auto-afirmações infantis), acaba sempre se cristalizando em direções equívocas quando
confrontada com as convenções sociais (preconceito, coerção policial).
Aqui, não é a burocracia totalitária
de regimes fechados que ossifica as
relações humanas, mas a rede paranóica do livre mercado que as deturpa, desloca e ressignifica. É como se tudo fosse uma trama de mal-entendidos figurada na imagem da Torre
de Babel inacabada, feita de enganos, de incomunicabilidade.
Em pelo menos um aspecto importante esse filme lembra outro: "O
Céu que nos Protege" (1990), de
Bernardo Bertolucci, baseado no romance de Paul Bowles (1949). Em
ambos os casos, um casal em crise
viaja à África Saariana, onde a iminência de morte de um dos dois promove um novo (ou último) encontro
verdadeiro entre eles. O primeiro,
no entanto, contracenando com a
recente descolonização da África,
realiza uma viagem metafísica ao
mundo não-ocidental, estranho e irredutível, protagonizado por personagens que se declaram "viajantes"
em vez de "turistas". Já o segundo
expõe um mundo atravessado pela
comunicação e pelo turismo, onde a
aldeia mais recôndita é também
"global". Sugestão à qual o portentoso aparato hollywoodiano, longe de
banalizar, confere uma legitimidade
sóbria.
Nesse sensível registro de época
não há lugar para o heroísmo da experiência existencial de Bowles. Se o
problema atual é estabelecer limites
para o terrorismo e a imigração, é
porque, na verdade, aquelas antigas
fronteiras físicas e simbólicas já foram vazadas, a indicar a defasagem
permanente entre os movimentos
humanos e a imobilidade de suas
instituições.
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