São Paulo, sexta-feira, 05 de março de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

A messalina cívica


Faço parte da vetusta maioria que já votou diversas vezes e, no meu caso, de forma inútil


A ESTA ALTURA do baixo astral que atravessamos, a grande novidade que se anuncia é a sucessão presidencial, se é que haverá mesmo uma sucessão. Pelo rodar da carruagem parece que Lula fará tudo, o possível e o impossível, para emplacar a sua candidata, o que dará de certa forma um caráter de continuísmo ao governo do PT e a sua base política. O próprio Serra, encarnando uma modalidade de oposição, não diluirá a pasmaceira original, não se trata de um fato novo e representa forças que, não faz muito tempo, estiveram no poder.
Ninguém pediu meu testemunho, mas lá vai ele. Faço parte daquela vetusta maioria que já votou diversas vezes e, no meu caso pessoal, sempre votei inutilmente: meus candidatos nunca foram eleitos e houve mesmo alguns pleitos em que não votei em ninguém.
Acredito que, de tanto chamarem as urnas de invioláveis e a cabine eleitoral de indevassável, a mecânica do voto entre nós tornou-se tão corrompida, que a política resultou violada e devassa, tornando-se a messalina cívica de nosso tempo.
Nada tenho contra as eleições, pelo contrário, governos anteriores fizeram-me a honra de trancafiar-me seis vezes nas enxovias da lei, justamente porque, entre outras coisas, sempre reclamei pelo direito de todos votarem livremente. Mas cada vez que o tempo passa, mais desprezo a política como um todo, não a política menor, essa de prometer emprego e bica d'água, a qual, no fundo, é simpática, combina com a fragilidade humana que nos torna merecedores de amor e redenção.
Meu desprezo é pela política maior, aquela que é servida em embalagens sofisticadas, a política que se autoproclama de ideológica. Creio que já citei, mas citarei outra vez um autor pouco recomendável: Albert Speer, arquiteto de Hitler, que cumpriu 20 anos de prisão (ele não foi condenado à morte porque o Tribunal de Nuremberg isolou-o dos demais nazistas que se marcaram pelo assassínio e pela brutalidade). Speer escreveu um livro, muito sincero por sinal, que termina com uma espécie de profecia: a humanidade futura não compreenderá como a humanidade da qual fazemos parte foi tão estúpida e atrasada ao se dividir em ideologias disso ou daquilo.
Li, há tempos, um livro sobre os últimos dias de Stálin: com exceção de detalhes episódicos, o homem que havia em Hitler e Stálin pouco ou nada diferiam.
Hitler ouviu Wagner pouco antes de se suicidar. Stálin estava ouvindo Mozart na hora em que tombou, vitimado pelo derrame cerebral que o mataria dias depois.
No essencial, eram dois homens iguais, embora adotassem ideologias diversas. O exemplo é sumário, esquemático, mas serve para tudo e para todos. Continuo não vendo diferença entre bons e maus, entre amigos e inimigos do povo.
Frequentemente, os valores se invertem na prática, muitas vezes os reacionários são mais progressistas do que os revolucionários e vice-versa. Certo, é um direito de todos serem assim ou assado, mas esse direito acaba no momento em que determinada ideologia justifica qualquer crime ou brutalidade contra o gênero humano. Os exemplos da história são muitos, mas não bastantes para mudar a situação.
Na realidade, a mudança de governo, se houver realmente mudança, será superficial, mudança de nomes, de algumas prioridades, mas a rotina se centrará nas promessas demagógicas de salários justos, segurança mais segura, educação e saúde para todos etc. etc.
Os otimistas dirão que antes assim, uma vez que a situação nacional é boa, o Brasil está em alta, o consumo não sofreu os efeitos da crise, de uma hora para outra nos tornamos uma superpotência cujo exemplo pode servir aos países subdesenvolvidos. Tudo bem. Não será caso de pregar uma alteração radical e revolucionária no ato de governar, mas a realidade é que as duas pré-candidaturas ameaçadas, Serra e Dilma, nada trarão de novo.
Marina Silva seria talvez um fato realmente novo, mas suas chances são remotas, como remotas são as esperanças de que o ritual democrático, de alternância do poder, traga para o povo um horizonte de poder mais justo e possível.


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