São Paulo, sábado, 05 de março de 2011

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Demasiado humano

Iniciada há 80 anos, série com o comissário Jules Maigret, criada por Georges Simenon, mudou o gênero policial ao fazer de um homem comum, que tenta compreender e não julgar, o herói da trama

MARCO RODRIGO ALMEIDA
DE SÃO PAULO

Antes da criação do comissário Jules Maigret, o homem comum tinha um destino certo nos romances policiais: ser a vítima. No melhor dos casos, o amigo pouco inteligente do detetive. Jamais seria o herói da trama.
Coube ao escritor belga Georges Simenon (1903-1989) quebrar essa tradição, em fins de fevereiro de 1931, com "Maigret e o Finado sr. Gallet", romance que lançou oficialmente a série Maigret.
A edição brasileira mais recente do livro, publicada pela editora L&PM em 2010, tem apenas 174 páginas. Foi o suficiente para criar um marco no gênero.
O francês Jules Maigret, corpulento, fumante de cachimbo, calado, de ar geralmente enfastiado, é um personagem raro nas histórias policiais.
Não é um detetive particular nem um amador curioso. Funcionário da Polícia Judiciária francesa, parece mais um típico funcionário de uma repartição pública.
Também não é um "gênio", capaz de deduções mirabolantes e inesperadas, tal como Sherlock Holmes e Hercule Poirot, criações de Conan Doyle e Agatha Christie, respectivamente.
"Não sei absolutamente nada", diz com frequência.
Tampouco faz o estilo "tira durão" e violento que os americanos (Raymond Chandler, Dashiell Hammet) souberam criar tão bem.
E, heresia das heresias nos livros policiais, no fim de um dia de trabalho ele quer mesmo é voltar para casa e comer a boa comida preparada pela esposa, a senhora Maigret.
Comparado aos ilustres detetives que o antecederam, Maigret pode parecer um tanto banal. O talento de Simenon foi fazer dessa "deficiência" o encanto de seu personagem.
"Jules Maigret não fala muito, ele ouve as pessoas, é um detetive psicológico. Ele muitas vezes sente pena dos culpados e seu lema é "compreender e não julgar'", disse Pierre Assouline, biógrafo de Simenon, à Folha.
Com esse olhar compreensivo, que nada parece espantar, Maigret esclarece os mais escabrosos casos, ainda que nem sempre o resultado seja satisfatório.
No primeiro livro da série, a missão do comissário é investigar o respeitável caixeiro-viajante Émile Gallet, o tal finado do título.
Aparentemente, Gallet foi esfaqueado e teve a bochecha esquerda arrancada por um tiro (Simenon também sabia ser macabro).
É a vítima, evidente. Algumas páginas adiante, porém, descobriremos que era também um pequeno vigarista.
Um crime é apenas "uma história banal de gente sem importância", já escreveu certa vez Simenon.
Nos 75 romances e vários contos que protagonizou, Maigret depara-se com a questão: descobrir a verdade nem sempre equivale a solucionar o caso.
É claro que, acima de tudo, o que fez a fama da série foi o talento literário de Simenon.
Surpreende que tenha conseguido conciliar qualidade e rapidez ao longo de toda a carreira.
Além da saga Maigret, publicou mais outros 117 romances e 21 volumes de memórias, além de contos.
"Como pode ser tão rápido e tão bom?", espantavam-se seus fãs.
Entre eles, artistas do quilate do cineasta Jean Renoir e dos escritores André Gide e T.S. Eliot.
Maigret só não conseguiu convencer a si próprio. Se na juventude imaginava ganhar o Nobel quando completasse 45 anos, na velhice dizia-se "envergonhado" de tudo o que escrevera.
Reação parecida à de Chandler, Hammet e de outros mestres do romance policial, que no fim da vida diziam-se arrependidos de praticar o gênero.
Essa tradição Simenon não conseguiu quebrar.


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